Antes o charco que tal espelho
Quem estraga a alegria, esse bem tão escasso, merece denúncia pública vigorosa. Desde que a gestão do Palácio de Cristal foi retirada à Porto Lazer e entregue ao Pelouro do Ambiente da Câmara, as melhorias têm sido evidentes. Não se repetiram as podas desastrosas na Avenida das Tílias, muitos novos arbustos e árvores têm sido plantados (magnólias, extremosas, tílias, camélias, criptomérias, freixos, cedros), e é visível que os novos responsáveis têm ideias sobre jardinagem que vão além da substituição das flores sazonais e do corte periódico da relva. Ainda não é Ponte de Lima, mas estamos no bom caminho. O recém-estreado Jardim das Cidades Geminadas é a melhor prova da criatividade e empenho desta nova gestão dos jardins dos Palácio.
E não é justamente agora, no início de tão promissora nova vida do recinto, que um projecto impensável, sob a capa da inevitável requalificação, ameaça ferir de morte os jardins do Palácio? Em 1951, o arquitecto José Carlos Loureiro foi o projectista da bolha que veio substituir o genuíno Palácio de Cristal, datado de 1865. Inaugurado em 1956, o Pavilhão dos Desportos (mais tarde chamado Pavilhão Rosa Mota) consumou um atentado ao património de que a cidade nunca se recompôs. É certo que o Porto se habituou ao edifício, e hoje já o tolera; mas seria abusivo dizer que gosta dele. O jardim teve meio século para recuperar da afronta, e as árvores que entretanto cresceram em torno do lago (também refeito por essa altura) formam uma cortina que quase enobrece o edifício que deixam entrever.
Preocupada com o escasso uso que o Pavilhão Rosa Mota tem tido, a Câmara do Porto resolveu chamar novamente José Carlos Loureiro para remodelar o edifício. As obras previstas, orçamentadas em 18,5 milhões de euros, são financiadas pelo Quadro de Referência Estratégico Nacional (QREN) e deverão decorrer de 2010 a 2011. Se se tratasse unicamente de modernizar o pavilhão, adaptando-o a novos usos, nada haveria a obstar ao projecto; mas a vaidade de um arquitecto, quando deixada à solta, tem consequências terríveis. A pretexto de se modernizar o antigo, acrescenta-se-lhe um edifício novinho em folha que vai destruir o lago («não passa de um charco», segundo o arquitecto, e será substituído por limpidíssmo e geométrico «espelho de água») e ocasionar uma razia insana no arvoredo.
O novo edifício estender-se-á do Pavilhão Rosa Mota até às traseiras da capela de Carlos Alberto (imagem do Público, 18/VI/2009)
O edifício terrorista justifica-se pela necessidade de auditórios para congressos, que - espera a Câmara - vão acorrer de todo o mundo ao Porto e ao Palácio logo que o renovado complexo esteja pronto. E o vasto auditório da Biblioteca Almeida Garrett, a cinquenta metros de distância, quase sempre desocupado, não serve para nada? Quem vai a um jardim como este quer encontrar árvores, pássaros, vida; prefere infinitamente ver patos a nadar num lago sombreado por vegetação a um estéril «espelho de água» sufocado por edifícios.
Durante a apresentação do projecto, feita a 17 de Junho em cerimónia no Pavilhão Rosa Mota, foram muitas as juras de amor e carinho pelo jardim, misturadas com incoerências várias que os jornalistas reproduziram com a ingenuidade habitual. Que «a intervenção será realizada com um respeito muito grande pela área envolvente, nomeadamente pelo jardim do Palácio de Cristal, com particular cuidado com as árvores classificadas e de grande interesse pelo porte ou espécie». Leio isto e fico tão tranquilo como se me dissessem que, tendo o canil camarário capturado um bando de gatos vadios num quintal, se comprometia a tratá-los com o maior carinho, nomeadamente não abatendo animais protegidos ou de grande porte. Ficava ciente de que não seria abatido nem um só lince da Malcata ou tigre da Malásia; mas ficava também a saber que, dos felinos capturados, nenhum sairia dali vivo. (Não há árvores classificadas nos jardins do Palácio; nenhuma das árvores em risco é rara ou tem porte especialmente notável, pois todas datam da época em que a bolha foi construída ou são mesmo posteriores.) Para compor o ramalhete de declarações absurdas, a notícia no JN termina com: «certo é que [nas palavras do arquitecto] "o novo equipamento não vai deitar abaixo nenhuma árvore"». Quer isto dizer que o edifício vai ser flutuante, pairando acima da copa das árvores, sustentado talvez por balões de hélio ou hidrogénio? E, se nenhuma árvore vai abaixo, para quê ressalvar as (inexistentes) árvores classificadas, raras ou de grande porte?
José Carlos Loureiro arrisca-se a ficar na história do Porto como o homem que destruiu o Palácio de Cristal duas vezes: a primeira, há mais de meio século, por encomenda; a segunda, hoje, por simples vaidade. Vaidade que os poderes públicos incitam, permitindo aos arquitectos adulterar a seu gosto, em prejuízo de quem nela vive, a cidade que deveria ser de todos.
19 comentários :
é ESCANDALOSO. Já agora quando nos acorrentamos às àrvores do Palácio? Ou só o coliseu ou o rivoli merecem indignação? Queremos sombra, queremos ouvir o som do vento nas copas , estamos fartos de cimentos com uma pelicula de água... queremos lagos ou charcos com ou sem girinos,e libelinhas, que cheirem a água pois têm muito mais vida que os asséticos espelhos de água.a cheirar a cloro ..Vamos não deixar que isso aconteça. Não há onde gastar dinheiro? Plantemos mais àrvores e não deixemos que abatam as que teimam em sobreviver a esta leva louca de pseudo «paisagistas»
Maria Eduarda
é escandaloso. Quando vamos atar-nos Às àrvores como se fez com o Coliseu? Queremos lagos onde nadem girinos e se sinta o cheiro a àgua e se veja o verde reflectido das vegetação e náo cimento coberto de água asséptica a cheirar a cloro.
Há arquitectura que prima pela elegância, discrição e comunhão com a natureza envolvente ("a casa da cascata" de F.L. Wright, por exemplo) e existe aquela que se quer impor aos "berros", impondo-se perante o nosso olhar e sobrepondo-se ao que a rodeia.
Este tipo de urbanismo está desactualizado há umas boas décadas. Mas não por cá, onde sempre que se utiliza o verbo "requalificar" se assina a sentença de morte a um conjunto de árvores.
Eu atrevo-me a dizer que José Carlos Loureiro se arrisca a ficar na história, por desaproveitar aquilo que tão poucos de nós temos o privilégio de conseguir na vida, ou seja, a oportunidade de corrigir um erro.
Haja coragem para resistir!
Ainda no sábado lá estive, e vêm-me lágrimas aos olhos ao imaginar que possam destruir seres tão magníficos como as árvores que lá vivem. Queremos luz, queremos água, queremos vida!
Como é que oferecemos resistência a isto?
é mau demais para ser verdade ... quando se pensa que já não podem destruir mais nada, que já não podem fazer pior, eis que sacam da manga algo terrível demais para se sequer imaginar ...
de facto é incompreensível: como a "cidade" parece completamente atordoada perante a eminência de um atentado tão inqualificável
deve ter amigos bem poderosos este senhor arquitecto ... não chegava já ter sido responsável por um dos maiores crimes patrimoniais na história da cidade ainda quer ser responsável por um outro ... deve estar a competir consigo próprio para ver se consegue fazer ainda pior (e não é nada fácil, dado que estamos a falar de um dos responsáveis pela destruição do verdadeiro e belíssimo Palácio de Cristal)
e nós vamos ficar a olhar??
Ainda bem que denunciaste este atentado porque senão tinha-me passado ao lado. Estive já a contactar algumas pessoas no sentido de fazermos algo - lançar uma petição, criar uma plataforma. Posso ter a tua autorização para divulgar este texto? Abraço, Ricardo Coelho
Este país está a saque e talvez se organize um dia destes, uma brigada à cata de arquitectos e seus mandantes. Pau no lombo...
Ricardo:
Desculpa o atraso na resposta, mas estive fora durante dois dias. Claro que podes divulgar o texto; quantos mais se juntarem ao protesto melhor. Mas, face a experiências anteriores, confesso-me pouco esperançado quanto aos resultados.
Abraço,
Paulo
Deixo aqui um endereço de uma petição on-line contra este crime:
http://www.petitiononline.com/rosamota/
Infelizmente, a minha sugestão para por o link para este blog não chegou a tempo.
Face a experiências anteriores, chego a uma conclusão bem diferente da tua, Paulo. De facto os protestos contra a destruição dos Aliados não atingiram o seu objectivo mas o mesmo não se pode dizer da Rotunda da Boavista (cujo plano de requalificação foi mudado em cima da hora) do Marquês (em que ainda se conseguiu evitar o abate de algumas árvores) ou do Bolhão (cujos planos de conversão num Shopping foram postos de lado). Estamos a ser confrontados com uma avalanche de crimes urbanísticos no Porto e é difícil dar resposta a todos mas com vontade tudo se consegue.
O nosso país, como muito outros, vive numa era de elitismo, procurando construir uma imagem moderna, de “avant garde”, para estrangeiro ver. De certo modo não sou contra, no entanto o que me revolta neste processo é o caminho sinuoso que tomamos para atingir este objectivo. Assiste-se ao culto da vedeta, entrega-se trabalhos ao arquitecto artista/escultor só para entrar no mapa das grandes obras internacionais. Onde está a multidisciplinariedade? O urbanismo não é da responsabilidade de uma só classe profissional!! Onde estão os engenheiros, os arquitectos paisagistas, os urbanismas neste processo, etc? Chega de monopólios! Acredito que haja alguns a trabalhar na sombra das vedetas, mas são abafados pela imposição e poder afirmação que querem atribuir à “Escultura”…Não sou contra a reformulações! O património não é só o betão!! Os jardins também têm uma história, um traço, um artista que os desenhou!!! O dito “Verde” da cidade também é património!!! Quanto tempo demorou aquela árvore a crescer? O que é que testemunhou? Que nichos ecológicos é que alberga? …Hoje em dia a facilidade de deitar a baixo e de adquirir novos elementos vegetais é tão grande, que não pensamos duas vezes no seu valor! As nossas paisagens são testemunhos dessa realidade!!! Chega de autoestradas, chega de luxos absurdos!!! Afinal estamos de tanga, ou não estamos de tanga!!! Vamos ser sustentáveis e procurar viver e trabalhar com o que temos… Assim é que seremos inovadores!!!! Estamos a transformar os nossos territórios em quimeras grotescas, sem identidade, desligadas da nossa realidade enquanto seres “naturais”!!!
É preciso perguntar, publicamente, aos "notáveis" da cidade, qual a sua opinião sobre este assunto e até onde se dispõem a ir em defesa desta causa.
Paralelamente, é necessário explicar ao maior número de pessoas - de uma forma clara e descomplicada - a barbaridade inqualificável que nos querem impingir. Além disso, a derrota não é uma coisa inevitável.
Nelson Ferraz
por favor,
eu nao sou do Porto mas este assunto afecta-me muito. por tudo.
nao me arranja uma foto do lago e arvores que vao ser destruidas por forma a eu fazer um post, linkando para a petiçao, que melhor ilustre o atentado que querem cometer?
ficaria grata.
Há uma foto do lago aqui (deve clicar na foto para obter uma imagem com melhor resolução).
Fotos do lago no Inverno e no Outono
muito obrigada
Temos que sair à rua! PROTESTAR, JUNTOS. Há 80 anos, sem tv, sms ou net, apenas a passar palavra, juntaram-se 200 mil portuenses na Baixa da cidade, pela vinda de Humberto Delgado ao Porto. Evoluímos ou regredimos desde então? Onde estão os portuenses? onde está o povo? está à espera do euromilhões. Já não há quilhões!
abraço
Que diz a Rosa Mota sobre isto?
Bastava ela opor-se, ou bastava ela exigir um referendo municipal.
Pedia-vos para assinar e divulgar a petição para um referendo local sobre este assunto, disponível em:
http://defesadopalacio.pegada.net/?page_id=236
Não, Não é escandaloso, é pura e simplesmente merdoso.
Esses mentacapos que outro nome não se poderá chamar, deviam ser mergulhados numa fossa ceptica até aos artelhos, mas de cabeçs para baixo. Como querem esses energúmenos viver em sociedade e ter o direito de cidadania se só sabem fazer porcaria? Quando tanto se proipala aos quatroventos que a beleza está na natureza, só falta destruir o universo. Esse arquitecto que vá viver parta outro planeta.Repugnante e dinheiro mal gasto na formação académica desse malfeitor.
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