Nos Açores, as três ilhas mais centrais, cada uma delas perfilada à frente das outras, formam o triângulo, pois é assim que toda a gente do arquipélago as conhece. Um triângulo muito irregular, que nem isósceles consegue ser, pois as distâncias, apesar de pequenas, são variáveis, com o Pico e o Faial a esfregarem-se um no outro sob o olhar ciumento de São Jorge. O Pico e são Jorge são compridos, cerca de 50 Km de extensão cada um, com ligeira supremacia de São Jorge; Faial é uma ilha em formato de bolso e o seu diâmetro é inferior a 20 Km. E há a questão da altura, sobremaneira valorizada por quem, como nós, não aprendeu a voar. A desproporção entre a montanha do Pico e o relevo manso das demais ilhas do arquipélago faz suspeitar que o criador quis usar na ilha que deixou para fazer em último lugar todo o material que avaramente poupou na construção das restantes.
Depois de uma semana de visita a São Jorge em Junho, e de outra ao Faial já em Agosto, houve ainda tempo em 2014 para completarmos o triângulo com uma estadia de uma semana no Pico, também em Agosto. Não escalámos a montanha, nem sequer tentámos, pois não somos de grandes feitos atléticos. Subimos até onde a estrada nos levou, mais uns 200 metros para tocarmos a nuvem-cachecol que sempre se enrola no pescoço da montanha. O nosso modo de andar, com os olhos a varrer cada moita e cada metro quadrado de terreno, não nos permite exceder muito a velocidade de um caracol. Quando tivéssemos explorado as encostas com o vagar que nos convém, talvez pudéssemos em consciência tranquila ascender ao topo, comprar a t-shirt celebratória da proeza, olhar, se a nuvem nos deixasse, o panorama da ilha e do mar e das outras ilhas tão pequenas, procurar as duas ou três plantas que se nos não tivessem ainda mostrado mais abaixo. Mas, para cumprir esse programa, precisaríamos de mais uma ou duas semanas de estadia, pois o Pico não se resume à montanha, e há partes da ilha mais apelativas e compensadoras para aficionados de botânica.
Entre as plantas que não se encontram só no topo da montanha há várias que nos fazem sentir em casa, como se tivéssemos rompido por uma fissura do espaço-tempo e déssemos connosco, inesperadamente, nos cumes do Marão ou da serra do Gerês. O tomilho que, em Julho e Agosto, dá o tom roxo à montanha do Pico é o mesmo Thymus caespititius que vive nas serras pedregosas do noroeste de Portugal. Não fosse a incursão nos Açores, não só no Pico mas em todas as outras ilhas com excepção de Santa Maria, esse tomilho seria um endemismo ibérico de pleno direito. Outro elemento continental frequente nas faldas da montanha é a torga (Calluna vulgaris), que nas ilhas é conhecida como rapa. Há ainda, e em grande profusão, o queiró insular (Daboecia azorica), que é uma miniatura com cores mais saturadas do queiró peninsular (Daboecia cantabrica). Mais estranho foi termos deparado, a 1240 m de altitude, com uma planta que só deveria existir 1000 metros mais acima: a Silene uniflora subsp. cratericola, versão de montanha da Silene uniflora de habitats costeiros que é comum nos Açores (particularmente no Pico), no litoral minhoto e, em geral, na costa atlântica europeia. Garantiu-nos depois um guia que a planta vai aparecendo esporadicamente pela montanha acima. Esse dúbio endemismo da montanha do Pico foi baptizado por Franco com base em diferenças morfológicas nada claras e, sobretudo, na ecologia radicalmente diferente: é um grande salto migrar da costa para o topo da montanha, onde no Inverno cai neve e as temperaturas negativas são frequentes. Mas, se se concluir que a mesma Silene uniflora surge a altitudes intermédias, já a transição não nos parece tão abrupta. Ou será que a 1240 metros de altitude ainda não se trata da subsp. cratericola? A que altitude é que a mesma espécie deixa de ser uma planta vulgar para passar a ser uma subespécie rara e exclusiva?
Diphasiastrum madeirense (J. H. Wilce) Holub
Este feto, que na verdade não é feto mas um parente algo afastado, começou por chamar-se
Lycopodium, e de facto o seu aspecto evoca irresistivelmente o
licopódio-da-Estrela: em ambas as espécies os esporângios aparecem reunidos em estróbilos semelhantes a pinhas que surgem no topo de hastes erectas. Já na ramificação e na folhagem as duas plantas divergem marcadamente: o
Diphasiastrum tem ramos achatados e muito ramificados, e as suas folhas surgem ordeiramente aos pares, comprimidas contra as hastes; o
Lycopodium tem um porte bem mais rasteiro, exibindo hastes de secção circular e folhas mais compridas, numerosas e desordenadas. São estas,
grosso modo, as diferenças morfológicas que levaram o botânico checo Josef Holub (1930-1999), em 1975, a criar o género
Diphasiastrum, distinguindo-o do género
Lycopodium. Como é normal nestes assuntos, nem todos os cientistas acataram a mudança.
O
Diphasiastrum madeirense é endémico da Madeira e dos Açores, estatuto que só lhe foi reconhecido em 1961 por Joan Hubbell Wilce, que em 1963 defendeu uma tese de doutoramento na Universidade de Michigan com o título "Section
complanata of the genus
Lycopodium". Até então considerava-se que estes licopódios macaronésios pertenciam à espécie
Lycodium complanatum (=
Diphasiastrum complanatum), que está amplamente distribuída no norte da Europa e na metade setentrional da América do Norte. Outra espécie morfologicamente próxima que ocorre nos mesmos continentes é o
Diphasiastrum tristachyum. O nosso
D. madeirense combina as hastes muito achatadas do primeiro com a tendência do segundo para produzir três a seis estrolóbios por cada haste fértil. Dado que neste género é frequente ocorrerem híbridos fertéis, não é de excluir que a espécie das ilhas tenha origem num matrimónio remoto entre o
D. complanatum e o
D. tristachyum, e entretanto se tenha adaptado a um clima mais ameno.
Nos Açores, onde está assinalado em sete das nove ilhas (as excepções são Santa Maria e Graciosa), o
D. madeirense só não é raro no Pico. Nesta ilha encontrámo-lo em altitudes entre os 600 e os 1300 metros, em habitats bastante diversificados: bosques de
Juniperus e
Ilex, plantações florestais, matos rasteiros de altitude dominados por
Calluna. Ao contrário do que reportam alguns autores, não parece ter especial preferência por sítios húmidos, e alguns dos locais onde o vimos eram, pelo contrário, secos e pedregosos.