25/11/2022

Acima das nuvens



Entre Maio e Junho, na montanha do Teide, em Tenerife, é a floração do taginaste que mais atrai a admiração dos turistas. Os exemplares de Echium wildpretii que, por inadvertência, instalam as suas torres vermelhas junto aos escassos pontos de estacionamento, são obrigados, qual presidente Marcelo, a posar ao lado das hordas de visitantes em busca das selfies mais invejáveis. E é plausível que no mundo vegetal a inveja também jogue o seu papel, pois afinal no Teide há muito mais plantas dignas de serem vistas e os apressadinhos dos turistas não lhes ligam nenhuma. Um exemplo é esta giesta branca que leva o nome de Spartocytisus supranubius, mas não parece, à primeira vista, ser assim tão diferente do nosso Cytisus multiflorus, que floresce em Abril (ou ainda mais cedo) em grande parte do interior norte e centro de Portugal. No Teide, tal como em Portugal, a giesta branca, cobrindo grandes extensões de terreno, funciona como neve primaveril para quem junta a imaginação à miopia, isto em territórios onde a neve propriamente dita é rara mesmo no Inverno.

Spartocytisus supranubius (L. f.) Christ [= Cytisus supranubius (L. f.) Kuntze]


A arrumação da giesta tenerifenha num género próprio (Spartocytisus em vez de Cytisus) sugere que as diferenças entre ela e a giesta-branca continental são de alguma monta. Olhemo-la então de perto para tomar nota dos detalhes. Das folhas não tiramos qualquer conclusão: ambas as espécies as largam cedo, ainda antes de abrirem as flores. Contudo, pode notar-se que as hastes floríferas da retama-do-Teide (nome vernáculo do S. supranubius) são algo mais robustas do que as do Cytisus multiflorus, e que as flores, tendo pedúnculos nitidamente mais curtos, aparecem agrupadas em verticilos sucessivos em vez de se distribuírem espaçadamente pela haste acima. Se já houvesse frutos para inspeccionar, notaríamos que as vagens da retama-do-Teide são glabras, enquanto que as da nossa giesta branca são peludas. São diferenças bastantes para aceitarmos estar em presença de duas espécies diferentes, mas justificar-se-á arrumá-las em géneros distintos? O nome Spartocytisus sugere que estas plantas sejam intermédias entre as do género Cytisus e as do género Spartium — de que o representante mais conhecido é o Spartium junceum. Contudo, pelas folhas unifoliadas (em vez de trifoliadas), pelas hastes roliças (em vez de estriadas) e pelos frutos compridos e estreitos, o Spartium junceum está morfologicamente muito mais distante da retama-do-Teide do que estão as giestas do género Cytisus. E é essa a opinião que recentemente tem prevalecido, com a generalidade dos autores a defender que o género Spartocytisus (de que há nas Canárias uma segunda espécie endémica, S. filipes) deve ser assimilado ao género Cytisus.

A retama-do-Teide não é exclusiva de Tenerife — aparece também na ilha de La Palma, a altitudes igualmente elevadas (em geral acima dos 2000 metros) — e nem sempre dá flores de um branco imaculado (veja nesta página). Porém, o epíteto supranubius é certeiro: o mar de nuvens criado pelos ventos alísios costuma quedar-se na vertente norte do Teide, originando um clima mais fresco e uma paisagem mais verdejante na metade setentrional da ilha. As nuvens ficam estacionadas bastante abaixo da cota dos 2000 metros, com o resultado de que a chuva quase nunca cai nessas regiões mais elevadas. Só alguns raros nevões e geadas no Inverno contrariam a secura dominante. Assim, a vegetação dos cumes do Teide está verdadeiramente adaptada a condições inóspitas, em que a falta de humidade é agravada (como acontece nos desertos continentais) pelas grandes amplitudes térmicas. A semelhança superficial entre a retama-do-Teide e a nossa giesta-branca disfarça uma incompatibilidade profunda: não há provavelmente nenhum lugar no mundo onde elas possam viver juntas.

20/11/2022

Bencomia duas vezes

As espécies dióicas (em que as flores masculinas e femininas nascem em indivíduos distintos) parecem-nos mais bem adaptadas às exigências da Terra, talvez pelo carácter igualmente dióico da nossa espécie. Mas, nas plantas, essa separação dos géneros obriga-as a encontrar um meio eficaz de coordenar a floração (algo que é automático em flores hermafroditas) e a fabricar flores masculinas claramente distintas das femininas, não vá dar-se o azar de os polinizadores se enganarem e não iniciarem a sua tarefa na fonte de pólen. Por isso, entende-se que, em espécies dióicas cuja fecundação depende do apoio de insectos, as flores masculinas sejam frequentemente maiores ou mais vistosas, e até possam estar prontas a ser visitadas mais cedo do que as femininas. É o caso dos salgueiros, cujas flores masculinas asseguram, mal surge a Primavera, o fornecimento de pólen e néctar a inúmeros insectos recém-nascidos que, ávidos por proteínas, inicialmente as preferem às femininas. Pelo contrário, na Ginkgo biloba, espécie dióica que produz amentilhos cónicos e se serve do vento para espalhar o pólen, as flores dos dois géneros são inconspícuas e reduzidas ao essencial.

As espécies do género Bencomia, também dióicas, seguem outra estratégia. As flores dos dois tipos são diminutas, quase indistinguíveis, mas as masculinas nascem agrupadas numa longa espiga (pode chegar aos 40cm) amarelada, enquanto que as espigas femininas não ultrapassam os 12cm e têm uma tonalidade rosada. Bencomia é um género endémico das ilhas Canárias, havendo notícia de quatro espécies, todas arbustivas. A folhagem delas é perene e muito graciosa: as folhas são grandes, pinadas com folíolos ovados, de um tom verde escuro brilhante que contrasta com o tomento esbranquiçado na face inferior; além disso, têm margens uniformemente serradas e agrupam-se em (falsas) rosetas terminais, o que dá à planta o perfil de uma pequena árvore, com um tronco curto mas uma copa atraente.

Comecemos pela Bencomia exstipulata, conhecida como bencomia de cumbre, que ocorre em lugares de altitude elevada nas ilhas Tenerife e La Palma. É tardia a florir (entre Abril e Maio), mas é a mais bonita das que conhecemos. Vimos alguns exemplares em dois locais na montanha do Teide: nos Roques de Chaval, onde estavam protegidos por uma cerca dada a sua raridade, e em La Fortaleza. Podem analisar mais pormenores desta espécie nesta ligação.

Bencomia exstipulata Svent.




A Bencomia caudata (chamada bencomia de monte) é menos rara do que a espécie anterior e floresce entre Fevereiro e Junho. Ocorre nas ilhas centrais do arquipélago (Gran Canária, Tenerife, El Hierro e La Palma). As fotos são de exemplares dos barrancos de Badajoz e Añavingo, em Tenerife. Algumas floras dão-na como presente também na ilha da Madeira, no que constitui um excelente exemplo de uma falsa notícia transformada em verdade pela comunicação deficiente entre botânicos. A Flora of Madeira, de J. R. Press e M. J. Short, esclarece o engano: durante o século XIX, alguém avistou um exemplar masculino a norte do Funchal, plantado num jardim. No entusiasmo da descoberta, ninguém se lembrou que uma espécie dióica não pode ser um endemismo numa ilha se dela só aí existir um indivíduo masculino. Esta Bencomia gosta de ladeiras expostas ao sol, na laurissilva ou em pinhais, entre os 500 e os 1200 metros de altitude.

Bencomia caudata (Aiton) Webb & Berthel


A Bencomia brachystachya (dita bencomia de Tirajana) floresce em geral um mês mais tarde do que a espécie anterior, e só há registo dela na Gran Canaria. Ainda não a conhecemos, mas podem compará-la com a B. caudata e a B. exstipulata aqui.

O isolamento entre as ilhas Canárias criou uma outra espécie de bencomia, a Bencomia sphaerocarpa (bencomia herreña), cuja distribuição se restringe a El Hierro. Ainda não visitámos esta ilha, mas há boas fotos da planta neste portal.

12/11/2022

Perfume dos bosques



Outono nos bosques é tempo de cogumelos (que, por precaução, nunca colhemos), de castanhas (essas sim, apanhamo-las, ainda que os castanheiros assilvestrados produzam frutos de calibre reduzido), e de diversos cheiros rústicos que misturam humidade com matéria vegetal em decomposição. A imagem acima, de um faial (de Fagus sylvatica) algures na Cantábria, foi captada com as cores frescas da Primavera, e entretanto pelo mesmo bosque já passaram repetidamente as sucessivas estações do ano, cada uma com a sua combinação peculiar de cores e cheiros. Em Portugal também temos faiais, mas são tristes plantações florestais e não bosques espontâneos, e por isso lhes faltam quase todos os ingredientes que fazem o encanto dos faiais do norte de Espanha. Por exemplo, não temos cá nem o super-chícharo, nem a valeriana-gigante, nem esta madressilva, nem a hepática, nem, finalmente, o Galium bem cheiroso que é pretexto para a conversa de hoje.

Galium odoratum (L.) Scop.


O Galium odoratum é uma planta de climas temperados ou frios que vegeta em bosques mais ou menos sombrios — não apenas de faias, mas também de abetos ou de azevinhos — e se encontra distribuída por grande parte da Europa e da Ásia, rareando na região mediterrânica. Não por acaso, a sua distribuição na Península Ibérica sobrepôe-se em grande parte à da faia enquanto árvore espontânea: é frequente na Cordilheira Cantábrica e nos Pirenéus, e quase inexistente a sul dessas cadeias montanhosas. Adaptada à luz escassa, a planta optou por um tipo de crescimento mais ou menos rastejante, comum a várias espécies (como a hera) que vivem nas mesmas circunstâncias. Tenta assim maximizar a cobertura do solo e aproveitar, tanto quanto possível, as nesgas de luz que a folhagem das árvores vai deixando coar. Apesar de serem muitas as espécies de Galium na flora portuguesa, nenhuma tem essa vocação para tapete vegetal, e as que vivem em bosques tendem a refugiar-se em clareiras, sendo talvez o Galium rotundifolium a mais notória excepção a essa regra.

Se o epíteto que ostenta não for falsa promessa, alguma mais valia olfactiva há-de o Galium odoratum trazer aos bosques onde mora. As fontes consultadas confirmam que isso é verdade, mas ressalvam que talvez o perfume exalado pela planta não seja muito pronunciado quando as folhas estão ainda tenras. Será essa a razão para o não termos detectado? O perfume de cumarina (igual ao da Magydaris panacifolia, umbelífera frequente em Trás-os-Montes) é produzido por toda a planta, não especialmente pelas flores, e persiste quando a planta é cortada, acentuando-se à medida que ela seca. Não espanta que, muitas vezes, o seu destino seja transformar-se em pot-pourri. Praticado em grande escala, talvez esse aproveitamento fosse uma ameaça à sobrevivência da espécie, mas nem toda a gente está habilitada a reconhecê-la na natureza e, em todo o caso, há já quem a cultive para esse fim.

06/11/2022

Jocama



Hoje conversamos sobre flores. Como o leitor sabe, as plantas distinguem-se formalmente por duas coordenadas (género e espécie), como se fossem lugares numa sala de cinema ou endereços de casas numa rua. Nós conhecemos plantas de cerca de 400 géneros, o que parece muito mas é na realidade um conhecimento diminuto: só na Península Ibérica (na Sierra Nevada ou nos Pirenéus) há mais do dobro que nunca vimos. Esta classificação, inventada por Lineu, inspirou-se na morfologia das plantas, e presta atenção especial às flores quando elas existem. Contudo, actualmente, não basta listar diferenças na aparência (fonte de muitos deslizes na história da taxonomia), apelando-se à genética para distinções mais fundamentadas. Mas há alguns géneros em que a identificação só pelas flores nos deixa poucas dúvidas.

Um deles é o género Teucrium, de que há umas 15 espécies em Portugal continental (das mais de 80 na Península Ibérica), todas herbáceas e aromáticas, das quais duas são endemismos portugueses: o T. vicentinum e o T. salviastrum. Nos Açores, estranhamente, não há registo de nenhum Teucrium endémico. No arquipélago da Madeira, porém, há uma mão cheia de espécies endémicas de Teucrium, algumas arbustivas, todas com floração muito vistosa (fotos e demais informação aqui). São elas o T. betonicum, o T. heterophyllum subsp. heterophyllum, o T. abutiloides e o T. francoi. Número que bate, por uma vez, o de endemismos deste género nas ilhas Canárias. Em La Gomera, La Palma, Tenerife e Gran Canaria ocorre a subespécie T. heterophyllum subsp. brevipilosum; e o T. heterophyllum subsp. hierrense, mais hirsuto que o anterior, só ocorre em El Hierro.

Nunca encontrámos a subspécie madeirense de T. heterophyllum, mas ela distingue-se das subspécies canarienses sobretudo pelas folhas crenadas e moderadamente tomentosas. Vimos a subspécie brevipilosum a uns 600m de altitude nas proximidades de Chinamada, aldeia da região de Anaga, em Tenerife. A jocama, nome que provém da língua guanche, é um arbusto que pode chegar aos 2m de altura, com folhas e talos aveludados, quase brancos de tanta penugem. Mas é claro que foram as flores vermelhas, em contraste com a folhagem, que nos encantaram. Enfim, os Teucrium que conhecíamos têm flores amareladas, brancas, cor-de-rosa ou violeta, em tons suaves e discretos. Esta exuberância em que as ilhas são férteis é, dizem, consequência da adaptação ao habitat ou aos polinizadores. Mas não será simples resultado da boa vida que nelas se leva?

Teucrium heterophyllum subsp. brevipilosum Gaisberg


As flores dos Teucrium têm um lábio grande, além de dois abanicos um pouco acima, atrás de estames proeminentes. Note agora nas fotos acima que as flores do T. heterophyllum são bilabiadas: os tais abanicos fecharam-se e formam um pequeno tecto (um lábio bífido) que cobre os estames. Curiosamente, na Madeira esta configuração da flor repete-se no T. betonicum e no T. abutiloides, mas não no T. francoi (espécie próxima do T. scorodonia continental).