27/12/2020

Variações da cinerária

Pericallis webbii (Sch. Bip.) Bolle


Lá para Maio ou Junho, chegará a vez de as cinerárias-das-floristas efeitarem garridamente os poucos canteiros sazonais que sobram na cidade do Porto. Ainda há espaço para elas no jardim do Carregal, mas não será por muito mais tempo. Dezasseis anos depois de ter sido amputado para a construção de um túnel rodoviário, um novo túnel, desta vez para uma linha de metro, há-de ser pretexto para lhe cortar mais uma fatia. Entretanto, confiando que em 2021 ainda haverá flores, aprendamos algo mais sobre as impropriamente chamadas cinerárias.

O nome científico correcto desse popular malmequer ornamental, criado no século XVIII, em Inglaterra, por cruzamento de duas espécies originárias das Canárias, é Pericallis × hybrida. Antes de serem arrumadas num género próprio, endémico da Macaronésia (Canárias, Madeira e Açores), estas plantas insulares integravam o género Cineraria, hoje em dia restrito à África do Sul. Essa mudança não é recente. O nome Cineraria, que significa acinzentada e decerto se refere à cor da folhagem de algumas espécies, foi cunhado por Lineu em 1766 num dos tomos do seu Species Plantarum. Nenhuma das endémicas das ilhas foi baptizada por Lineu, mas logo em 1788 o francês Charles Louis l'Héritier (1746-1800) deu nome a várias delas — incluindo a Cineraria lanata e a Cineraria cruenta, progenitoras da cinerária-das-floristas — num opúsculo intitulado Sertum Anglicum, dedicado a novas plantas cultivadas no Horto Real de Kew, em Londres. O nome genérico Pericallis, que em grego significa muito bonita (e assenta melhor a estas plantas do que o cinzento evocado pelo nome Cineraria), foi publicado em 1836 pelo escocês David Don (1799–1841), bibliotecário da Linnean Society e professor de botânica no King's College em Londres. O nome teve aceitação geral, e ainda durante o século XIX quase todas as espécies insulares então conhecidas deste grupo de asteráceas foram transferidas para o novo género. Mas dois séculos não bastam para mudar hábitos arreigados, e a cinerária-das-floristas continuará a ser assim chamada ad eternum.

Desde há muito que preferimos plantas silvestres aos híbridos domesticados de comércio hortícola, mas a conversa que com elas mantemos no campo (ou, neste caso, nas ilhas) são mais proveitosas se lhes conhecermos a biografia. Assim, quando demos de caras com a Pericallis lanata (ex-Cineraria lanata) em Tenerife, pudemos falar-lhe dos jardins citadinos onde a sua descendente todos os anos vem passar uma temporada, e perguntar-lhe por que razão, morando ela e a P. cruenta na mesma ilha, não tinham optado por consumar o enlace amoroso em plena natureza, sem a alcovitice dos jardineiros.

Ou somos ainda incapazes de interpretar a linguagem das plantas, ou a P. lanata recusou-se a falar connosco. Apesar da desfeita, não deixamos de reconhecer que ela (fotos em baixo) é a mais mimosa e singular de todas as do seu género: é uma planta miniatural, rasteira, de base lenhosa, com folhagem miúda semelhante à da hera, e que adopta um hábito pendente quando cresce em taludes; os seus capítulos florais são solitários, em vez de agrupados em cachos como nas Pericallis mais convencionais (de que é exemplo a P. webbi, acima ilustrada, endémica da Grã-Canária). Endémica de Tenerife, a P. lanata é frequente na metade sul da ilha, quente e ensolarada, mas prefere escarpas sombrias ou o abrigo de arbustos mais xerófilos. A sua floração decorre de Março a Maio.

Pericallis lanata (L`Her.) B. Nord.

22/12/2020

Uvas com espinhos

Berberis vulgaris L.
  
As árvores, por exemplo, toleram bem o tédio:
praticamente nada acontece no reino vegetal de uma floresta,
e não é por essa razão que as exaltações guerreiras
se multiplicam. O homem
— disse o velho — deveria aprender a imitar
o ímpeto lento das árvores
que sem serem vistas e jamais parando, sobem sempre.
Gonçalo M. Tavares, Uma viagem à Índia — Canto VI (Editorial Caminho, 2010)

15/12/2020

Sítios de Interesse Botânico de Portugal Continental

Coordenação: Sociedade Portuguesa de Botânica
Edição: Imprensa Nacional Casa da Moeda
Patrocínio: Câmara Municipal de Lisboa
Data: Novembro de 2020
Este livro (à venda nas lojas da INCM) é o melhor presente de Natal para quem queira conhecer ao vivo, e nos habitats que lhes são próprios, os nossos tesouros botânicos desde o Minho até ao Algarve. Numa edição de grande formato, ilustrada com centenas de fotos, cada um dos 23 capítulos é escrito por quem conhece a fundo os valores naturais dos lugares descritos e tem gosto em partilhar esse conhecimento com o leitor. Como se diz no texto de contracapa, “é a primeira vez, na história da Botânica e da edição em Portugal, que se dá a conhecer uma colectânea de áreas geográficas com valores florísticos excepcionais”.
Eis a lista dos capítulos da obra e respectivos autores:
  1. Afloramentos de carbonatos do Norte de Portugal — Carlos Aguiar & Paulo Alves
  2. Afloramentos ultramáficos do Nordeste de Portugal — Carlos Aguiar & Tiago Monteiro-Henriques
  3. Areias envolventes do estuário do Sado — Carlos Neto, João Paulo Fonseca & José Carlos Costa
  4. Batólito de Arga — Paulo Alves
  5. Bemposta do Douro — Paulo Pereira
  6. Brejos da Marateca — João Farminhão
  7. Cabo Espichel — Paulo Pereira
  8. Encostas de Arruda dos Pisões — Miguel Porto
  9. Eolianitos da costa sudoeste — Manuel João Pinto, Mário Cachão & Helena C. Cotrim
  10. Litoral de Viana, de Areosa a Montedor — Paulo Ventura Araújo
  11. Mata da Margaraça — Jorge Paiva
  12. Morro do Jaspe — José Luís Vitorino
  13. Nordeste leonês: a serra de Montesinho — Carlos Aguiar
  14. Península do Ancão e pinhais do Garrão — André Carapeto
  15. Pesqueiras do rio Minho — Paulo Ventura Araújo
  16. Planalto vicentino — Manuel João Pinto & Helena C. Cotrim
  17. Serra do Cercal — Jorge Capelo
  18. Serra do Gerês e o vale superior do rio Homem — Paulo Ventura Araújo
  19. Serras de Monchique — Jorge Capelo
  20. Serra de Nogueira — Carlos Aguiar
  21. Serras do Porto — Paulo Alves & Estêvão Portela-Pereira
  22. Vale encaixado do Castelo de Paderne — André Carapeto
  23. Zonas húmidas de Covões, Cantanhede — Paulo Ventura Araújo

12/12/2020

Ervilhaca viciosa



Quando queremos fingir que Portugal é como a América, com estradas infinitas que levam a lugares insuspeitados, a solução é abandonar as modernas auto-estradas e enfiar por uma daquelas estradas nacionais que, acumulando curvas sobre curvas, se esforçam sempre por encontrar o caminho mais demorado entre dois pontos. É um truque modesto que substitui a dimensão espacial, em que a exiguidade do país nos obriga a ser pobres, pela dimensão temporal, em que estamos tão bem servidos como o resto da humanidade. Os 226 quilómetros da EN 222 entre a avenida da República, em Vila Nova de Gaia, e os amendoais de Almendra (passe o pleonasmo), em Vila Nova de Foz Côa, convertem-se assim numa rota de evasão para preencher os dias (muitos dias) com o vagar que lhes é devido. É verdade que o troço mais celebrado da estrada, entre a Régua e o Pinhão, não é especialmente curvilíneo, e até encoraja os condutores a lançarem-se em correrias imprudentes. Mas antes e depois, e exceptuando os pontos onde o traçado foi barbaramente "corrigido", a estrada recusa teimosamente alongar-se em rectas.

Nenhuma curva da EN 222 é escusada, nenhum quilómetro é redundante. Talvez por isso nunca lhe tenham suprimido os quatro mil metros a mais que impedem a quilometragem de coincidir com o nome. Entre São João da Pesqueira e Foz Côa, a estrada afasta-se do Douro e desenrola-se num quase planalto entre os 600 e os 700 metros de altitude. A canícula que aflige o vale do Douro nos meses de Verão chega ali atenuada, e os vinhedos que preenchem os socalcos dão lugar a pomares e a manchas esparsas de pinheiros, sobreiros, azinheiras e zimbros. É um bom lugar para orquídeas nos meses de Primavera: a Orchis mascula e a Neotinea maculata chegam a ser abundantes, e com sorte avistamos também a Dactylorhiza sulphurea. Depois de Foz Côa a estrada desce e, ultrapassada a ponte sobre o Côa, reaproxima-se do Douro durante uns breves quilómetros. É não muito longe da ponte, num talude seco rigorosamente virado para sul, que mora, na prestigiosa companhia do feto-de-veludo, a ervilhaca que hoje ocupa o escaparate.

Vicia vicioides (Desf.) Cout.


Vicia, que nada tem a ver com "vício", era já o nome latino destas leguminosas de hábito trepador, em especial da ervilhaca-comum (Vicia sativa). O que há de estranho na Vicia vicioides é o nome informar-nos que se trata de uma Vicia parecida com uma Vicia — caso semelhante é o do Halimium halimifolium, em que ficamos a saber que uma certa planta tem folhas dela própria. Tais disparates não pretendem exprimir a verdade filosófica de que cada coisa é idêntica a si mesma, e de facto ninguém tem culpa deles. Resultam apenas de ajustes taxonómicos e da aplicação das regras da nomenclatura botânica: as plantas em causa começaram por chamar-se Ervum vicioides e Cistus halimifolius; e, quando foram transferidas para géneros mais apropriados, essas regras impuseram que se mantivessem os epítetos específicos.

As ervilhacas, que despontam cedo na Primavera e que, em Portugal continental, são comuns em quase todo o tipo de habitats, não nascem todas iguais. Há algumas que são usadas para forragem, outras que nascem onde nenhum gado lhes põe o dente, umas que são muito vulgares, outras que são absolutas raridades. Na Lista Vermelha da Flora Vascular de Portugal Continental, há quatro espécies de Vicia com estatuto de vulnerável (V. bithynica, V. onobrychioides, V. orobus e V. peregrina), uma regionalmente extinta (V. tetrasperma), uma quase ameaçada (V. narbonensis) e, finalmente, uma com dados insuficientes, precisamente a nossa V. viciodes. Talvez ela seja ainda mais rara do que aquelas que mereceram algum estatuto de protecção, mas pode ser apenas mais esquiva. Certo é que há registos antigos da sua presença em Santiago do Cacém e em Elvas, mas há muito que não é vista nessas paragens e agora só sabemos dela bem mais a norte, em Foz Côa. As bermas de estrada, mais ainda com as limpezas tornadas obrigatórias, não são refúgio seguro para plantas raras, mas felizmente a V. viciodes fez seguro de vida e está presente pelo menos num outro local do vale do Côa, esse muito mais recatado.

A V. viciodes, que se diferencia bem das suas congéneres pela forma e cor das flores (que são minúsculas, com menos de 1 cm de diâmetro) e pelos cálices densamente vilosos, tem uma distribuição global restrita, ainda que repartida por dois continentes: fora da Península Ibérica, onde é mais frequente entre Málaga e Cádiz, só aparece em Marrocos e na Argélia. A sua precária presença no noroeste de Portugal marca, e por grande distância, o limite setentrional da sua distribuição.

06/12/2020

Bálsamo das ilhas

Decerto o leitor já terá notado que algumas plantas surgem aqui com galardões de qualidade que outras não exibem. A etiqueta «espécie endémica» é um deles, como a que identifica queijos e presuntos de regiões demarcadas. Serve essencialmente como um alerta para a originalidade dessa espécie, ou para o carácter localizado das suas populações nativas. Ser endémico de regiões muito restritas é frequentemente sinónimo de raro, ou a precisar de medidas de conservação, mas é também um bom pretexto para comparações com espécies semelhantes de outros lugares, e para o estudo dos eventuais processos evolutivos que geraram as diferenças. Há, porém, uma questão prévia que ainda não resolvemos: como é que se decide que uma espécie é endémica de um dado local?



Claro que se a espécie tiver uma distribuição muito pontual, o mais provável é que tenha o seu berço nesse habitat. Mas se for cosmopolita, ou ocorrer em várias regiões distantes umas das outras, como se sabe em que locais foi cultivada, de que jardins escapou, ou de onde provém? A vasta literatura indica que podemos estar descansados quanto a esse trabalho de arqueologia botânica: há estudos genéticos fiáveis para responder a estas perguntas, muito mais fáceis afinal do que saber de onde surgiu um vírus.

Cedronella canariensis (L.) Webb & Berthel.


No caso do arbusto que vos mostramos hoje, com cerca de um metro e meio de altura, as conclusões sobre a sua origem ainda deixam dúvidas. O género Cedronella é monoespecífico, com uma espécie endémica das Canárias e da Madeira, descrita em 1845 por P. B. Webb e S. Berthelot na revista Histoire Naturelle des Îles Canaries. Não surpreendentemente, Lineu já sabia da sua existência em 1753, mas designou-a então Dracocephalum canariense e este nome foi abandonado a favor do actual. Em 1844, H. C. Watson recebe notícia do botânico amador (e cônsul britânico nos Açores) Thomas Hunt sobre a presença da C. canariensis na ilha de S. Miguel, e divulga a novidade em 1847 no London Journal of Botany. Hunt suspeita que os exemplares de S. Miguel possam ter origem no cultivo, pois das folhas aromáticas da planta prepara-se um chá saboroso, muito apreciado nas Canárias. Há agora também registos da espécie nas ilhas do Faial e de Santa Maria, aparentemente bem adaptada às florestas de Myrica faia e Pittosporum undulatum, e em algumas obras a C. canariensis surge listada como sendo também nativa dos Açores.

Enquanto aguardamos por uma decisão final, notemos que, ao contrário do que é usual na família Lamiaceae, esta «hortelã» tem folhas compostas, com três folíolos de margens serradas num pé longo. No cimo dos talos surgem, no Verão, cachos de flores tubulares rosadas com cerca de 2cm de comprimento. Os exemplares das fotos são de um recanto de floresta laurissilva em Anaga, Tenerife.

29/11/2020

Perpétuas de outras praias

Schizogyne sericea (L. f.) DC.


Em Tenerife, ao longo de toda a linha costeira, em zonas de mato baixo ou em substratos arenosos, este pequeno arbusto prateado, profusamente florido nos meses da Primavera, cumpre o papel que nas praias do continente europeu está reservado à perpétua-das-areias (Helichrysum italicum). É a mesma folhagem linear, a mesma ramificação desordenada, os mesmos capítulos desprovidos de «pétalas» — e é, sobretudo, o mesmo amarelo dourado alegrando habitats semi-desérticos. De facto, os dois arbustos pertencem à mesma divisão (ou tribo) da família das asteráceas, tribo essa que, grosso modo, se caracteriza pelos capítulos só com flores tubulares formando corimbos mais ou menos densos. Fazem também parte da tribo arbustos como o alecrim-dos-paredes (Phagnalon saxatile) e ervas ruderais como o Pseudognaphalium luteo-album. São plantas generosas em néctar que devem o seu sucesso na natureza às honestas relações de proveito mútuo que estabelecem com os polinizadores.

O francês Alexandre Henri Gabriel de Cassini (1781-1832), que em 1823 cunhou o nome Schizogyne (que significa fêmea fendida, numa alusão à morfologia das flores femininas), admitiu que o novo género era muito próximo de Phagnalum; mas, quebrando a tradição, preferiu não usar um anagrama dessa palavra para o baptizar. Já então um quase anagrama, Gnaphalium, era o nome válido de um género botânico, e dentro da mesma tribo são vários os anagramas de Filago (por exemplo, Logfia e Ifloga) que também designam géneros botânicos.

A Schizogyne sericea, espontânea em todas as ilhas das Canárias à excepção de Fuerteventura, e conhecida no arquipélago como «salado blanco», só não é um endemismo canarino por ter sido assinalada nas Selvagens. Se não fosse esse percalço geo-político, o próprio género Schizogyne seria exclusivo das Canárias, já que a única outra espécie conhecida é endémica da Grã-Canária. Trata-se da Schizogyne glaberrima (fotos em baixo), que pelo tom verde da folhagem se distingue facilmente da sua congénere, e que no vernáculo local é apropriadamente chamada «salado verde». 

Misteriosamente, Cassini, no mesmo artigo em que inagura o nome Schizogyne, descreve uma espécie, S. obtusifolia, que seria hoje a terceira do género se a sua existência fosse reconhecida. Cassini baseia a descrição em material guardado no herbário de um Sr. Mérat, e a incerteza quanto ao local de colheita chega a ser cómica: pode ter sido nas ilhas Maurícias ou em Tenerife, ou ainda no Cabo da Boa Esperança. Contudo, a planta que Cassini descreve corresponde, com quase perfeita exactidão, àquela que hoje conhecemos como Schizogyne sericea, nome que lhe foi atribuído apenas em 1836 por Augustin de Candolle (1778–1841). Não sabemos por que razão Candolle, que obviamente conhecia o trabalho de Cassini, achou necessário o novo nome, mas é improvável que Cassini tenha descrito uma planta cujo paradeiro actual seja desconhecido. Certos portais de referência insistem porém que Schizogyne obtusifolia é um nome válido, e sustentam mesmo que a planta em questão é endémica de Tenerife (exemplos: 1, 2). Contudo, esse nome não é incluído em nenhuma listagem actual da flora do arquipélago (exemplos: 3, 4).

Schizogyne glaberrima DC.

23/11/2020

Medronheiro canarino

A maioria das plantas da nossa flora inicia agora um merecido descanso, no que são acompanhadas por várias espécies da fauna. Muitas árvores ficam carecas de folhas, com o tronco envelhecido de musgos e um ar desolado, mas sabemos que adormecem para rejuvenescer. Há, porém, excepções. A floração do medronheiro (Arbutus unedo), arbusto de folhagem perene, está agora a começar: as flores branco-rosadas e perfumadas, agrupadas em cachos, dividem o espaço na copa com frutos da época anterior, corados de frio mas ajudando a atrair os poucos polinizadores que ainda por aí andam nesta época do ano. Os medronhos, com textura e cor de morangos maduros mas quase sem sabor, ficam bem em compotas, bolos, rebuçados e aguardente. E esse uso tem beneficiado a planta, por interessar a fruticultores e destilarias a expansão da sua área de distribuição, que outrora se restringiu à região mediterrânica e Europa ocidental.

Arbutus canariensis Veill. ex Duhamel


Uma vez que uma parte significativa da flora das Canárias descende da flora mediterrânica, não foi surpresa descobrir que há uma espécie de medronheiro endémica das ilhas dos grupos central e oriental deste arquipélago (Tenerife, La Gomera, Grã-Canária, El Hierro e La Palma). Tal como o parente continental, o Arbutus canariensis tem um tronco avermelhado, que pode atingir os 7 metros de altura e se descasca com a idade. As folhas são maiores e mais escuras do que as do medronheiro continental, mas têm também aspecto coriáceo e margens serradas. As flores exibem um leve tom cor-de-rosa e pedicelos com inúmeros pêlos glândulares, detalhe que ajuda a distinguir a espécie canariense do A. unedo.

O A. canariensis está ameaçado pela perda de habitat, sobretudo nas ilhas em que as reservas de água estão mais perto do fim e os fogos de Verão se têm intensificado — regimes extremos de seca e calor a que o medronheiro canariense não parece adaptar-se. Esta espécie aprecia taludes da floresta laurissilva com bastante humidade mas solo enxuto, e onde a concorrência com outros arbustos e árvores é menor. Os registos mais recentes indicam que as populações silvestres em La Palma e La Gomera estão perto da extinção. As fotos são de exemplares do barranco de Valsendero na Grã-Canaria.

15/11/2020

Bunho triangular



Em 2020, nos meses agora longínquos em que gozámos de uma breve liberdade condicional, visitámos duas vezes o rio Minho. Da primeira vez, ainda em Maio, não vimos caiaques a deslizar nas águas e só nos cruzámos com duas pessoas. Do lado de lá havia quem nos acenasse numa espécie de desespero por não poder chegar mais perto. Quando voltámos, em meados de Julho, já portugueses e galegos se misturavam na ânsia de esquecer os meses em que foram impedidos de atravessar o rio. Caminhar junto ao rio, ou testar a medo a temperatura da água com os pés descalços, dificilmente poderiam ser, dessa vez, experiências solitárias. Ainda assim, são muitos os quilómetros de rio entre Valença, Monção e Melgaço, e pouca gente se dá ao incómodo de fazer centenas de metros a pé para chegar aos pontos mais esconsos. E é nesses lugares de relativo sossego que se refugiam as raridades botânicas.

Schoenoplectus triqueter (L.) Palla


A raridade que hoje mostramos dá pelo nome de Schoenoplectus triqueter; chamamos-lhe bunho-triangular por causa do caule esquinado com três faces bem marcadas. Trata-se de uma ciperácea robusta, com hastes de mais de um metro de altura, que aprecia substratos lodosos em remansos de rios ou estuários, e que, em Portugal, tendo desaparecido do litoral centro, apenas se encontra algures no Guadiana e, em muito maior número, no troço do rio Minho entre Caminha e Monção. Só há poucos anos se soube da sua presença no extremo noroeste de Portugal; mas, tirando essa boa novidade, a perda ou degradação do habitat da planta têm sido generalizados, tanto assim que ela foi incluída na Lista Vermelha da Flora de Portugal com o estatuto de vulnerável. Da mesma lista constam três outras plantas ameaçadas que também têm no rio Minho as suas principais (ou únicas) populações nacionais: a cravina-das-pesqueiras. o golfão-pequeno e a espiga-de-água.

A vida em Portugal não está fácil para os bunhos: duas outras espécies de Schoenoplectus, S. erectus e S. litoralis, figuram em destaque na Lista Vermelha. Ambas estão em perigo crítico de extinção, e é provável que a primeira, com última morada conhecida no baixo Mondego, já não exista em território nacional. Dentro do género, o S. lacustris, que se distingue por ter caules mais altos e de secção perfeitamente circular, é o único que tem dado mostras de pujança, com muitos núcleos populacionais tanto no litoral como no interior do país.

08/11/2020

Árvore dos fusos

Quando falamos de bosques, imaginamo-los umbrosos e acolhedores no Verão, abertos e húmidos no Inverno, abrigando carvalhos, azinheiras, sobreiros, padreiros, zelhas, pilriteiros, medronheiros, cerejeiras e uma profusão de arbustos que se regalam com os solos frescos e férteis destes locais. Com sorte, há ainda regatos ou penas de água que alimentam avelaneiras, amieiros, salgueiros, freixos e herbáceas excepcionais, além de taludes de rochas raras e fetos ainda mais invulgares. São habitats fáceis de destruir, porém, e restam poucos no nosso país. No nordeste transmontano sobram alguns dos melhores carvalhais do país, e é lá que mora a única população portuguesa conhecida de Euonymus europaeus.

Parque Natural Collados del Asón, Cantábria
Euonymus europaeus L.


Esta é uma planta de ampla distribuição na Europa e na Ásia, frequente nas montanhas do norte da Península Ibérica. É resistente ao frio e ao calor intensos, mas não parece apreciar o clima mais ameno do oeste da Península. Foi na Cantábria que vimos inúmeros exemplares desta árvore de copa magnífica, a bordejar margens de rios caudalosos, em solo calcário e bem drenado. As flores têm pedicelo longo, mas são minúsculas e branco-esverdeadas; o seu fraco efeito decorativo é compensado pelos frutos muito vistosos, da cor do coral, de fazer inveja a qualquer cerejeira.

Os vários nomes por que é conhecida, aludindo precisamente aos frutos (barrete-de-padre, bonetero), indicam que já foi mais abundante. Muitos recordam que a madeira, densa, homogénea, perfumada e de cor amarelo-claro, foi outrora a das rocas e fusos (até das histórias de fadas), e dos arcos de violino. Mas em Portugal a fuseira está ameaçada, sobretudo porque os poucos indivíduos remanescentes podem ser vítimas do corte indiscriminado de carvalhais ou do desbaste da vegetação de sebes. Consta da Lista Vermelha da Flora Vascular de Portugal Continental com o estatuto de vulnerável, o que não é boa notícia.

01/11/2020

Caldeira da Lomba

Lagoa da Lomba, ilha das Flores, com Potamogeton polygonifolius Pourr.
Na ilha das Flores há uma correspondência quase perfeita entre caldeiras vulcânicas e lagoas: cada caldeira tem a sua lagoa, e cada lagoa está na sua caldeira. A regra só é quebrada pela teimosia da caldeira Seca, que para fazer jus ao nome decidiu prescindir da lagoa a que tinha direito. Nos outros pares caldeira/lagoa, os dois substantivos funcionam como sinónimos: caldeira Comprida e lagoa Comprida são dois nomes do mesmíssimo lugar, ainda que um picuinhas da gramática detecte aqui uma metonímia ao tomar-se o conteúdo pelo continente (ou vice-versa).

A lagoa/caldeira da Lomba é talvez a que menos entusiasma os turistas: de baixa profundidade e situada num planalto, falta-lhe em volta o dramatismo das ladeiras a pique e do recorte acidentado dos montes. A lagoa Rasa, embora igualmente... enfim... rasa, não é diminuída pelo cenário, já que a sua função é fazer contraste com a lagoa Funda, que lhe fica mesmo ao lado mas 170 metros abaixo. O arvoredo em volta da lagoa da Lomba, quase todo exótico, também não a favorece, pois até um visitante distraído percebe que uma plantação de criptomérias é muito menos bonita do que a floresta nativa que reveste as encostas das melhores caldeiras.

Dito isto, a lagoa da Lomba tem particularidades que justificam uma visita: de todas as lagoas da ilha, é a que está a maior altitude (650 m), ficando a lagoa Branca num segundo lugar muito distanciado (570 m); e as suas águas baixas e margens lodosas favorecem uma flora especializada que, com excepção da lagoa Rasa, está ausente das outras lagoas. Exemplos são a Littorella uniflora, de ampla distribuíção europeia, e a rara endémica Isoetes azorica: nas Flores, ambas ocorrem apenas na lagoa da Lomba e na lagoa Rasa. E a diminuta Elatine hexandra, abaixo retratada, só mora mesmo na lagoa da Lomba.

Elatine hexandra (Lapierre) DC.


A Elatine hexandra, como quase todas as suas congéneres, integra aquele grupo de plantas anuais que, vivendo em margens de lagos ou charcos, preferem esperar que a água baixe ou se evapore deixando a descoberto o solo lamacento, tratando depois de cumprir o seu ciclo vital antes que a lama fique ressequida. O seu calendário fenológico, embora sobretudo estival, é pois oscilante e depende das condições locais, podendo em anos propícios sucederem-se várias gerações da planta na mesma temporada. Espécie prolífera, a E. hexandra produz em média umas 40 sementes por cápsula. O farto banco de sementes que deposita no solo está pronto a germinar logo que haja condições favoráveis.

Única espécie do seu género nos Açores, a Elatine hexandra está distribuída por grande parte da Europa, presumindo-se que seja rara em Portugal continental. Contudo, a pequenez da planta (caules prostrados de 2 a 8 cm de comprimento, flores e frutos de 1 mm de diâmetro, folhas de 2 a 3 mm de comprimento), o seu surgimento efémero, e o carácter pouco aprazível dos habitats que ocupa — tudo isso pode contribuir para que ela seja pouco vista. Uma espécie afim, Elatine brochonii, só em 2011 foi detectada em território nacional, mas depois concluiu-se que não era assim tão rara (ver mapa de distribuição no Flora-On). Tanto em Portugal continental como nos Açores, é de crer que a E. hexandra seja mais frequente do que aquilo que sugerem os poucos registos existentes. Mesmo que no continente alguns habitats naturais se tenham perdido, ela não se faz rogada em ocupar habitats artificiais como margens de represas ou lagos de recreio.

25/10/2020

Uma Volutaria por outra

Nos jornais portugueses, são raras as notícias sobre a flora lusitana e a natureza é, jornalisticamente falando, uma paisagem incompreendida e mal etiquetada. Aos poucos redactores que os jornais ainda empregam não se perdoaria a desatenção face ao notável programa de conservação do lince ibérico no Vale do Guadiana. Mas, quanto a plantas, elas são mencionadas aquando dos grandes incêndios, sendo então referidas colectivamente como floresta, ou são capa dos suplementos dos jornais ao fim-de-semana como vegetais cozinhados. Decerto por insistirem nesta abordagem superficial da flora, os jornais portugueses perderam recentemente duas excelentes notícias:

1. Portugal deixou de integrar a lista de países europeus (eram 3) que não têm uma lista vermelha da sua flora nativa. Apresentada oficialmente a 13 de Outubro, a Lista Vermelha da Flora Vascular de Portugal Continental é o resultado de vários anos de trabalho de uma equipa diligente de botânicos que, com o apoio de amadores, conseguiu elaborar um mapa muito fiel da distribuição e do nível de ameaça a que estão sujeitas mais de 600 espécies de plantas nativas em Portugal continental. O país possui finalmente um guião detalhado para uma acção concertada de conservação de habitats e espécies da sua flora espontânea.

2. No âmbito do esforço de prospecção botânica que a elaboração desta lista vermelha exigiu, reencontrou-se uma pequena população de uma asterácea muito rara, a Volutaria crupinoides, planta de locais pedregosos e secos de origem calcária, de que, no continente europeu, só há registo em Portugal. Os poucos indivíduos (que não conhecemos) ocupam uma área muito reduzida nas arribas marítimas da serra da Arrábida.

O género Volutaria é essencialmente tropical, com um ascendente comum asiático, havendo registo de cerca de 18 espécies distribuídas pelo norte de África, região mediterrânica, Ásia, Península Ibérica e ilhas Canárias. São herbáceas anuais que se têm disseminado com sucesso após o aparecimento nessas regiões de vastas zonas abertas com vegetação rala e regimes de precipitação semi-desérticos.



Nas Canárias, onde pouco chove e já quase não há rios, contam-se duas espécies endémicas de Volutaria (V. bollei, de Lanzarote e Fuerteventura, e V. canariensis, presente em todas as ilhas), além de populações de V. tubuliflora. Os capítulos florais deste género são muito vistosos, com cálices penugentos e flores hermafroditas ao centro, notando-se outras, estéreis e grandes, no bordo (enfeites que decerto tentam os polinizadores). A floração dos exemplares de V. canariensis que vimos em Maio de 2019 em Tenerife estava quase terminada, e há que aguardar que a pandemia deixe de ser notícia para os vermos mais floridos.

Volutaria canariensis Wagenitz