12/12/2020

Ervilhaca viciosa



Quando queremos fingir que Portugal é como a América, com estradas infinitas que levam a lugares insuspeitados, a solução é abandonar as modernas auto-estradas e enfiar por uma daquelas estradas nacionais que, acumulando curvas sobre curvas, se esforçam sempre por encontrar o caminho mais demorado entre dois pontos. É um truque modesto que substitui a dimensão espacial, em que a exiguidade do país nos obriga a ser pobres, pela dimensão temporal, em que estamos tão bem servidos como o resto da humanidade. Os 226 quilómetros da EN 222 entre a avenida da República, em Vila Nova de Gaia, e os amendoais de Almendra (passe o pleonasmo), em Vila Nova de Foz Côa, convertem-se assim numa rota de evasão para preencher os dias (muitos dias) com o vagar que lhes é devido. É verdade que o troço mais celebrado da estrada, entre a Régua e o Pinhão, não é especialmente curvilíneo, e até encoraja os condutores a lançarem-se em correrias imprudentes. Mas antes e depois, e exceptuando os pontos onde o traçado foi barbaramente "corrigido", a estrada recusa teimosamente alongar-se em rectas.

Nenhuma curva da EN 222 é escusada, nenhum quilómetro é redundante. Talvez por isso nunca lhe tenham suprimido os quatro mil metros a mais que impedem a quilometragem de coincidir com o nome. Entre São João da Pesqueira e Foz Côa, a estrada afasta-se do Douro e desenrola-se num quase planalto entre os 600 e os 700 metros de altitude. A canícula que aflige o vale do Douro nos meses de Verão chega ali atenuada, e os vinhedos que preenchem os socalcos dão lugar a pomares e a manchas esparsas de pinheiros, sobreiros, azinheiras e zimbros. É um bom lugar para orquídeas nos meses de Primavera: a Orchis mascula e a Neotinea maculata chegam a ser abundantes, e com sorte avistamos também a Dactylorhiza sulphurea. Depois de Foz Côa a estrada desce e, ultrapassada a ponte sobre o Côa, reaproxima-se do Douro durante uns breves quilómetros. É não muito longe da ponte, num talude seco rigorosamente virado para sul, que mora, na prestigiosa companhia do feto-de-veludo, a ervilhaca que hoje ocupa o escaparate.

Vicia vicioides (Desf.) Cout.


Vicia, que nada tem a ver com "vício", era já o nome latino destas leguminosas de hábito trepador, em especial da ervilhaca-comum (Vicia sativa). O que há de estranho na Vicia vicioides é o nome informar-nos que se trata de uma Vicia parecida com uma Vicia — caso semelhante é o do Halimium halimifolium, em que ficamos a saber que uma certa planta tem folhas dela própria. Tais disparates não pretendem exprimir a verdade filosófica de que cada coisa é idêntica a si mesma, e de facto ninguém tem culpa deles. Resultam apenas de ajustes taxonómicos e da aplicação das regras da nomenclatura botânica: as plantas em causa começaram por chamar-se Ervum vicioides e Cistus halimifolius; e, quando foram transferidas para géneros mais apropriados, essas regras impuseram que se mantivessem os epítetos específicos.

As ervilhacas, que despontam cedo na Primavera e que, em Portugal continental, são comuns em quase todo o tipo de habitats, não nascem todas iguais. Há algumas que são usadas para forragem, outras que nascem onde nenhum gado lhes põe o dente, umas que são muito vulgares, outras que são absolutas raridades. Na Lista Vermelha da Flora Vascular de Portugal Continental, há quatro espécies de Vicia com estatuto de vulnerável (V. bithynica, V. onobrychioides, V. orobus e V. peregrina), uma regionalmente extinta (V. tetrasperma), uma quase ameaçada (V. narbonensis) e, finalmente, uma com dados insuficientes, precisamente a nossa V. viciodes. Talvez ela seja ainda mais rara do que aquelas que mereceram algum estatuto de protecção, mas pode ser apenas mais esquiva. Certo é que há registos antigos da sua presença em Santiago do Cacém e em Elvas, mas há muito que não é vista nessas paragens e agora só sabemos dela bem mais a norte, em Foz Côa. As bermas de estrada, mais ainda com as limpezas tornadas obrigatórias, não são refúgio seguro para plantas raras, mas felizmente a V. viciodes fez seguro de vida e está presente pelo menos num outro local do vale do Côa, esse muito mais recatado.

A V. viciodes, que se diferencia bem das suas congéneres pela forma e cor das flores (que são minúsculas, com menos de 1 cm de diâmetro) e pelos cálices densamente vilosos, tem uma distribuição global restrita, ainda que repartida por dois continentes: fora da Península Ibérica, onde é mais frequente entre Málaga e Cádiz, só aparece em Marrocos e na Argélia. A sua precária presença no noroeste de Portugal marca, e por grande distância, o limite setentrional da sua distribuição.

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