21/02/2023

Simetria sem espelho

A Astronomia é a única ciência que tem lugar cativo nas páginas de divulgação científica dos jornais portugueses, a par de uma ou outra notícia mais desenvolvida quando damos uma voltinha por Marte. Entende-se a preferência: todos queremos estar informados de que é feita a matéria escura que parece preencher quase todo o universo, e ser os primeiros a saber mal se descubra um planeta não demasiado longínquo idêntico à Terra. Um tal planeta nem precisa de ser novo, por estrear. Muitos até preferem que seja habitado, crentes de que isso o tornará mais acolhedor, com o conforto de uma casa, um céu azul, água da chuva e uma paisagem que nos alegre a memória. Sabemos, porém, que é improvável que alguma vez se encontre um tal lugar. Não faltam por aí rochas, átomos, energia e força gravítica para fabricar mundos como o nosso, mas são tantas as possibilidades que é muito difícil repetir um formato no universo. Só não nos sentimos sozinhos na Terra, tolhidos de medo e tédio, porque os cientistas ainda não desistiram de procurar.

Atente, agora, caro leitor, no caso de uma semente ou uma planta que, sem a nossa imaginação, aporte a uma ilha onde não há nada reconhecível, nenhuma semelhança apaziguadora com o seu habitat de origem. Não sofre por isso, nem fantasia com monstros, perigos e Solaris. Os seus genes ordenam-lhe apenas que vá e se multiplique. E ela chega, descansa, e toma nota do solo, da água disponível, do lado onde o Sol nasce, de quem a poderá polinizar, trincar as folhas, fazer sombra. E, em não mais do que dois ou três milhões de anos, temos mais uma espécie novinha em folha.

Ora vejamos o exemplo do género Hypericum, cosmopolita, com cerca de 500 espécies e 35 representantes na Península Ibérica. Tem nas ilhas Canárias (e na Macaronésia) várias espécies endémicas notáveis. Há-as de porte arbustivo, outras herbáceas, com ou sem glândulas escuras nas folhas, sépalas e pétalas. Mas todas exibem flores amarelas de estames proeminentes, dispostas em inflorescências vistosas no topo dos ramos. Algumas espécies continentais têm flores brancas ou rosadas, mas a tendência é de as acomodar no género Triadenum.

A espécie que vos mostramos hoje é um endemismo da Grã-Canária, Tenerife e La Gomera. Distingue-se das demais espécies das Canárias essenciamente pelas folhas. Estas são ovadas, quase glabras, com margens glandulosas (que rescendem a uma substância que afasta os predadores), e nascem em pares opostos a abraçar o caule. O traço distintivo é a folhagem decussada: as folhas dispõem-se em andares muito próximos entre si, estando cada par de folhas rodado de 90 graus relativamente ao que está abaixo, formando os dois pares uma cruz e evitando esconder o sol uns aos outros. As fotos são de Maio, de exemplares do barranco de Añavingo e do barranco de Herques, em Tenerife.

Hypericum reflexum L. f.

Sem comentários :