11/12/2023

Estreleiras de La Palma



Uma colecção desgarrada de factos só se transforma em conhecimento quando conseguimos estruturá-los e dar-lhes coerência — ou seja, quando conseguimos enquadrá-los numa teoria. Uma teoria não é necessariamente uma verdade objectiva e absoluta, e pode até ser uma construção parcial e altamente subjectiva, mas sem um esforço mais ou menos consciente de teorização tudo perde sentido e somos apenas joguetes de forças que nos ultrapassam. Até uma actividade lúdica como a observação da natureza exige compreensão e sistematização. As coisas não são belas apenas porque nos suscitam certas reacções espontâneas dos sentidos, mas também (ou sobretudo) porque se nos afiguram como exemplos consumados de certas classes reconhecíveis.

Coleccionar plantas, mesmo em observações fugazes que se transmudam em fotos duradouras, exige que, ao sempre necessário (e quase infantil) deslumbre por cores, formas, texturas e cheiros, juntemos a dada altura a sistematização. Sem alguma forma de organizar as plantas que vamos conhecendo, a memória pouco ou nada retém. Conseguir distinguir as famílias botânicas mais comuns é uma das primeiras etapas para nos familiarizarmos com o mundo vegetal. Também ajuda saber reconhecer, ainda que sem grande rigor, os diferentes habitats: as plantas dunares não costumam aparecer em carvalhais, as plantas de beira-rio não toleram ambientes desérticos, e assim por diante.

Deste modo, sem grandes compromissos, vamos construindo um conhecimento que nos permite tirar maior gozo estético e intelectual do mundo à nossa volta. Mas esse mundo é tão diverso que o amadorismo é constantemente confrontado com os seus limites — e, porque qualquer especialização abarca necessariamente um campo restrito, todos nós somos amadores em quase tudo. O género Argyranthemum nas Canárias fornece um bom exemplo de como o conhecimento empenhado, mas destituído da minúcia e do aparato técnico-científico só ao alcance de especialistas, pode levar a conclusões erróneas.

Argyranthemum haouarytheum Humphries & Bramwell


Como já tivemos oportunidade de explicar, são mais de vinte as espécies de Argyranthemum (ou estreleiras) endémicas das Canárias; se contarmos subespécies, o número ultrapassa trinta. É tentador organizar tamanha diversidade agrupando espécies e subespécies em grupos com alguma homogeneidade, tendo em conta por exemplo o formato das folhas e a sua maior ou menor suculência. Usando esse critério, uma das estreleiras endémicas de La Palma, A. webbii (ilustrada em baixo), com folhas de textura herbácea divididas em lóbulos amplos, emparelharia muito bem com o A. broussonetii, endémico de Tenerife. E as duas espécies ainda partilham a preferência pelos habitats sombrios da laurissilva. Parecem muito menos vincadas as semelhanças entre as duas estreleiras endémicas de La Palma: a segunda delas, A. haouarytheum (fotos em cima), apresenta folhas algo suculentas e com lóbulos estreitos; quanto ao habitat, prefere lugares soalheiros e pedregosos às mais variadas altitude (desde a costa até aos cumes mais elevados da ilha).

Entram em cena os estudos genéticos para nos confundir a teoria. Em artigo que já antes referimos (Oliver W. White et al., 2020), os autores constroem uma árvore filogenética quase completa do género Argyranthemum; por ela aprendemos que as duas estreleiras de La Palma estão evolutivamente muito próximas uma da outra, e muito distantes do A. broussonetii de Tenerife. Curiosamente, os autores constataram igualmente que uma estreleira de La Gomera que havia sido subordinada ao A. broussonetii era dele geneticamente longínqua (por isso o seu nome foi corrigido e ela é agora chamada Argyranthemum callichrysum subsp. gomerensis). Com os dados morfológicos contradizendo a informação genética, estamos perante exemplos de convergência evolutiva: plantas de diferentes linhagens acabam por assumir aspectos semelhantes em resposta a condições idênticas de habitat. As folhas largas são uma resposta ao ambiente sombrio da laurissilva (para maximizar a captação de luz), assim como as folhas suculentas (mais capazes de armazenar água) o são a um ambiente semidesértico.

Com este fascículo são já oito as espécies canarinas de estreleiras que aqui mostramos. Se compararmos fotos com paciência e tivermos em conta a ilha em que nos encontramos, talvez consigamos dar nome a mais alguma que nos tenha encantado a vista. Mas, como amadores que somos, o grau de incerteza é sempre elevado. Mesmo as antigas certezas de diligentes especialistas podem ser derrubadas por novos estudos.

Argyranthemum webbii Sch. Bip.

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