Mostrar mensagens com a etiqueta Mondego. Mostrar todas as mensagens
Mostrar mensagens com a etiqueta Mondego. Mostrar todas as mensagens

11/05/2022

Morgada dos canaviais

Com o fim da maioria das restrições à circulação, as nossas cidades reanimaram-se com turistas e com o comércio de produtos mais ou menos genuinamente portugueses. Curiosamente, parecem agora dominar as lojas de um só produto: a que só vende pastéis de nata, mornos e em embalagens de formato patenteado; a das latas de azeite e sardinha, com design arrojado, dispostas em carrosséis dourados; a do pão de farinha ancestral moída em mó de pedra; a dos peluches de baleias e vaquinhas açorianas, de igual tamanho; a dos ovos moles de Aveiro; a das carteiras em cortiça; a dos queijos com designação de origem protegida; ou a que só serve bombocas, o doce feito de uma cobertura fina de chocolate, recheio de marshmallow e uma bolachinha na base. Dir-se-ia que, com a falta de crianças no país, esta última seria uma aposta comercial sem sucesso. Mas não: a loja, pequena e forrada a caixas coloridas, está sempre com fila à porta — e todos sentimos uma pontada de inveja daquela revoada de famílias estrangeiras com muitas crianças, afadigadas a coleccionar coisas boas mais ou menos portuguesas.

Vem este arrazoado a propósito da herbácea de cujas raízes se fazia antigamente o tal marshmallow, como lhe contámos aqui quando ainda não tinhamos visto a planta. Aqui está ela:

Althaea officinalis L.


Actualmente o marshmallow já não se faz com o suco retirado das raízes da Althaea officinalis (é gelatina + açúcar + corante) mas se, apesar disso, ainda quiser conhecer esta planta, pode fazê-lo a partir do meio de Junho nos canaviais e orlas de arrozais que acompanham o rio Pranto, pouco antes de ele se juntar ao Mondego, na Figueira da Foz. Atinge cerca de 2 metros de altura e mostrará então as flores, que são como as dos hibiscos, grandes e brancas com um centro púrpura. As folhas são aveludadas nas duas faces, mas duras, talvez para se defenderem do apetite voraz dos gafanhotos, que têm fama bíblica por comezainas sem pudor deste tipo de plantas em habitats húmidos da Ásia e norte de África. Tome nota: apesar de ser perene, no Outono esta herbácea murcha e já não estará em exibição.

28/11/2021

Hibisco dos arrozais

O rio Pranto mostra, perto da foz, a placidez de um resignado. É um dos últimos afluentes do Mondego e, em Alqueidão, junto à Figueira da Foz, entrega a água com vagar, recriando um pântano gigantesco que por vezes engorda até verter. É um pasto de mosquitos multi-variantes, mas também um refúgio de garças, corvos e flamingos. Desse pachorrento caudal aproveitam os extensos arrozais do Baixo Mondego, num amanhar intensivo da terra que lamentavelmente não dispensa o uso de químicos nem o de máquinas ruidosas para guiar a água. Mas é precisamente na proximidade destes arrozais, em bermas de caminhos margosos ou nas margens de canaviais que juraríamos impróprios para quem aprecia estar vivo, que está a única população portuguesa conhecida deste fantástico arbusto.

Hibiscus-palustris L.


Quando vimos estas plantas no início de Junho, não estavam ainda em flor e a folhagem tinha um aspecto desolador. As folhas, esbranquiçadas na face inferior e com um hábito pendente, pareciam prontas a desabar. Mas um mês depois, como se salvas, exibiam lindas flores solitárias, de enormes pétalas rosadas com uma mancha branca (ou púrpura) na base e um duplo cálice a protegê-las.

Criticamente em perigo, diz o Lista Vermelha da Flora Vascular de Portugal. Não nos surpreende: apesar de ser uma espécie perene, o núcleo conhecido tem cerca de 150 indivíduos e está em declínio, ameaçado pela expansão do regadio, pela limpeza descuidada da vegetação e pela degradação do habitat.

Na Península Ibérica, o Hibiscus palustris tem uma distribuição restrita à Cantábria e à população portuguesa na Beira Litoral. Talvez esta se extinga se avançar o projeto de regadio no vale do Pranto. Que os decisores, frequentemente sem memória útil, não digam mais tarde que não foram avisados deste risco.

01/11/2011

Dedaleira de primeira

Digitalis thapsi L.


Os dedais de flor não a distinguem da Digitalis purpurea L., embora os das fotos sejam de um tom de rosa mais claro com laivos cor-de-groselha e nasçam amarelos. A folhagem arrosetada e os caules ajudam mais na identificação: são revestidos por um indumento amarelo e pegajoso, feito de pêlos e glândulas — e talvez daí lhe venham os nomes comuns abeloura-amarelada e pegajo. Os cálices e as corolas são também externamente pubescentes, e toda a planta exibe uma ar macio e peludinho.

É um endemismo do oeste da Península Ibérica (os ingleses chamam-lhe Spanish peaks), preferindo encostas pedregosas e pousios nas montanhas do centro e centro oeste. Em Portugal é mais frequente no norte e centro, mas, segundo a Flora Ibérica, também é vista pelos Algarves. Não surgindo imprevistos, floresce entre Maio e Agosto. Podem ler no nosso vizinho mais informação sobre ela.

Está registado um híbrido entre a D. thapsis e a D. purpurea, a que os botânicos espanhóis chamam D. purpurea nothosubsp. carpetana (Rivas, 1925) e que os botânicos portugueses, que o avistaram no norte do país, designam por D. minor (Coutinho, 1906). O epíteto thapsi é problemático. Lê-se na maioria das referências que deriva do nome de algum lugar no norte de África, e nós acreditamos, claro; mas neste caso alude provavelmente ao tomento amarelo que recobre a planta e que terá lembrado a Lineu (que a baptizou) a Thapsia villosa em flor.

05/04/2011

A cor das estrelas

Gagea soleirolii F. W. Schultz [= Gagea nevadensis Boiss.]


Na visita à bacia do Mondego, avistámos ao longe, nas margens do rio Seia, umas penhas de granito cobertas por flores amarelas. Mais narcisos, sorrimos, ena tantos. Mas o tom de amarelo parecia esverdeado, não o matiz dourado das trombetas. Entretanto, decorria uma caçada aos javalis (a última da temporada) e, embora fosse improvável que os atiradores nos confundissem com um, tínhamos sido avisados pela GNR para nos mantermos longe dos montes, onde o ricochete de alguma bala era risco não desprezável. Mas que fazer? Era imperativo fotografar aquelas plantas baixinhas que são quase só flor. Com a audácia que é sina dos impetuosos e dos incautos, subimos até elas.

Como vêem, é uma herbácea sem défice de formosura, mas não é um narciso. É uma liliácea que começa a florir no Inverno, e o verde que nos atraiu é o colorido que domina no exterior das seis tépalas. Aprendemos depois que ela aprecia pastos pedregosos e clareiras em floresta de montanha; que as hastes não sobem além dos 6 cm (por isso, sem as umbelas de flores, passa despercebida e houve mesmo quem a tivesse designado Gagea pygmaea); que as flores hermafroditas não têm nectários e a dispersão das sementes (em forma de pêra; as das espécies de zonas desérticas são achatadas para se espalharem facilmente com o vento) está a cargo das formigas; que é perene (embora viva parte do ano reduzida a uma cebolinha a que, em italiano, chamam carinhosamente cipollaccio di Soleirol); e que é natural de Portugal, Espanha, França e Sardenha.

A Nova Flora de Portugal conta quatro espécies de Gagea no nosso território, das cerca de quarenta que há na Europa e na Ásia. A G. soleirolii ocorre nas terras altas e frias do Minho, Trás-os-Montes e Beiras. O folhedo nas fotos parece basto, mas não é: neste género, cada planta tem uma ou duas folhas basais filiformes que nascem directamente do bolbo, e umas poucas caulinares, alternas e caneladas; mas no nó do cacho de (em geral, não mais de três) flores, há duas brácteas semelhantes a folhas pequenas que preenchem o ramalhete.

Sir Thomas Gage (1781-1820), barão inglês, foi botânico estudioso de líquenes, sobre quem se escreveu: "In the most abstruse parts of the vegetable world, he has laboured hard by the lamp, as well as by the sun." O epíteto específico homenageia outro colector empenhado, Joseph-Francois Soleirol (1791-1863), naturalista amador que se especializou na flora da Córsega.

O nosso voto é que a ervinha se passe a chamar estrela-de-Inverno, sem indicação da cor da flor por nos soar redundante. A escolha inglesa, yellow star-of-Bethlehem, precisa de incluir esse detalhe para a distinguir da outra star-of-Bethlehem, que é branca. O nome coloquial que talvez tenha vindo à mente do leitor, gaja, é que não serve, pois o povo sabe que esta palavra indica «pessoa incerta cujo nome não se lembra ou não se quer mencionar». Não há registo de qualquer designação vernácula para este primor.

25/03/2011

Manso planalto

Pinheiros-mansos (Pinus pinea) em Oliveira do Conde (Carregal do Sal)
9 de Dezembro de 1950 — Nem sei caçar aqui. As lebres correm para o infinito, as perdizes voam para o azimute, e cada passo que dou não acrescenta nem adianta. É tal a minha sensação de impotência diante desta imensidade, que chego a ter a impressão de que cada chaparro foi um homem que desesperou de atingir qualquer fim, e parou.

Miguel Torga, Diário (D. Quixote, 2010)

22/03/2011

Narciso do Mondego

Narcissus scaberulus Henriq.


Damos nomes às coisas para encarcerá-las no tempo. Assim fazemos com os recém-nascidos. Assim os escritores dão títulos a seus livros: para que não se percam numa série infindável. Para que não desapareçam de nossos olhos. Para que nunca se repitam. Essa é a soberba humana — sempre repetida. Luiz Antonio de Assis Brasil, Ensaios íntimos e imperfeitos (L&PM Editores, 2008)

Pelas fotos, estas flores quase não se distinguem das que mostramos hoje, mas, ao vivo, foi fácil verificar que as últimas são mais pequenas. Além disso, a comparação entre as folhas erectas dos exemplares que vimos, na serra dos Candeeiros, do N. calcicola

– espécie descoberta por Francisco A. Mendonça em 1926 e por ele descrita no ano seguinte no Comptes Rendus Hebdomadaires des Séances et Mémoires de la Société de Biologie (Paris)

e as prostradas, mais estreitas e de margens ásperas (escabras) do N. scaberulus

– baptizado, em 1888, no Boletim da Sociedade Broteriana, por Júlio Henriques (1838-1928), botânico que foi director do Jardim Botânico da Universidade de Coimbra e fundador da Sociedade Broteriana –

ainda mais justificam a diferenciação taxonómica entre eles, apoiada aliás pela separação geográfica e pela caracterização do solo dos respectivos habitats. Na Nova Flora de Portugal (1994), de J. Amaral Franco e M. Luz da Rocha Afonso, estes dois narcisos da secção Jonquillae são apresentados como espécies distintas. Na Flora Ibérica, a proposta segue o conselho de A. Fernandes (em 1926, no Boletim da Sociedade Broteriana) e distingue duas subespécies: N. scaberulus subsp. calcicola, que ocorre nas serras calcárias do centro e sul de Portugal, e também em Espanha; e N. scaberulus subsp. scaberulus, endemismo português, que vive em solos graníticos na zona central da bacia do Mondego, um pequeno paraíso que, sem a ajuda da Luísa e do Joaquim, não teríamos descoberto.

O leitor certamente reparou que as tépalas do N. cyclamineus se recurvam para trás. Note agora que, no N. scaberulus subsp. scaberulus, elas formam um colar isabelino, quase perpendicular à taça. Para a semana, à mesma hora, poderá ver o penteado que falta, um narciso com as tépalas em franja sobre a corola.