13/07/2022

Outras uvas, o mesmo mar



A penínusula de Jandía, que remata Fuerteventura pelo sul, tem um contorno que faz lembrar uma bota de cano alto, tal como o da Itália. O modelo transalpino é o mais estiloso dos dois (nem outra coisa se esperaria do país que dita a moda em calçado), mas exagera na altura do tacão e é bem menos confortável para o pé do que o modelo de sola rasa adoptado por Fuerteventura. Em contraste com a chocante agressividade da Itália, que não se cansa de pontapear a Sicília, Jandía não quer atingir nada nem ninguém, nem sequer agitar as águas mais do que o necessário para que as ondas continuem a rolar.

Tetraena gaetula (Emb. & Maire) Beier & Thulin subsp. gaetula


Pouco depois de passarmos pelo casario branco de uma aldeia piscatória, a estrada de Jandía, sempre de terra batida, termina num farol situado exactamente na biqueira de bota. Entre a esparsa vegetação que pontua a terra ressequida, e muito mais abundante do que a endémica erva-pulgueira, destaca-se um arbusto rasteiro, de folhas carnudas e avermelhadas, quase esféricas. A sua semelhança com a uva-do-mar (Tetraena fontanesii), que conhecemos de outras ilhas do arquipélago, é inegável, mas as diferenças são também claras: a planta de Jandía é de menor porte, e apresenta folhas mais pequenas e com diferente coloração. Trata-se de facto de duas espécies distintas do género Tetraena; nas ilhas Canárias, ambas são exclusivas de habitats costeiros, mas em Marrocos e na Argélia podem ocorrer em ambientes desérticos afastados do mar. Nas Canárias, a Tetraena gaetula é de longe a mais rara das duas, vivendo apenas em Fuerteventura, onde está restrita à ponta de Jandía. No aspecto geral, os exemplares canários de T. gaetula divergem de modo significativo das plantas tidas como da mesma espécie originárias do continente africano, e que são documentadas nas fotos destas páginas. Não quererá alguém averiguar se as diferenças observadas no hábito, na folhagem e na forma dos frutos se reflectem em diferenças genéticas, merecendo por isso adequado reconhecimento taxonómico?

Até 2003, ano em que foi publicado um artigo por dois botânicos suecos e um inglês propondo uma reorganização da família Zygophyllaceae, quase todas as espécies hoje incluídas no género Tetraena pertenciam ao género Zygophyllum. Tetraena era até essa data um género mono-específico: o seu único membro, T. mongolica, provinha das estepes da Ásia central. Com a nova circunscrição, passou a ser um género maioritariamente africano: das 40 espécies reconhecidas, só duas são asiáticas, e as restantes distribuem-se desde o norte de África e o médio Oriente até à África do Sul, havendo apenas uma (T. alba, presente em Espanha e na Grécia) que consegue atravessar o Mediterrâneo e pôr um pé na Europa.

1 comentário :

Francisco Clamote disse...

Estranhas (e belas) formas de vida.