Favas à francesa
Em crianças, passámos algumas tardes à volta de jogos de tabuleiro, onde a peça de cada jogador avança ou recua numa via sinuosa e colorida, repleta de bonecos que indicam ora perigos ora prémios. O percurso de cada um é ditado pelo lançamento de um dado e, portanto, estes brinquedos não exigem perícia nem talento. É necessário, isso sim, paciência e algum entusiasmo que vença o sono. Neles aprende-se que nem sempre é o mérito que garante a recompensa, ou o erro que penaliza. Aqui é o acaso que manda, mais uma entidade a ser temida na infância. Ficaram-nos na memória as inúmeras vezes em que o valor do dado, que azar, nos obrigou a recuar no percurso: um castigo duplo, porque perdemos caminho e regressamos a um local já visto. E assim nos chega, de mansinho, outra lição: é preciso sabedoria para se voltar a apreciar um lugar onde já se esteve.
Vem isto a propósito de algumas idas recentes a Mogadouro. Primeiro, em meados de Março, para procurarmos núcleos de Narcissus rupicula nos afloramentos de granito e xisto que se avistam quando nos aproximamos da cidade, alguns erguendo-se acima dos 800 m. E vimo-los, muitos e perfumados. Numa segunda visita, em Abril, fomos espreitar uma ribeira encaixada num vale de acesso fácil. Subimos uma ladeira pedregosa, a par de um rebanho de cabrinhas que fazia então vagarosamente o mesmo percurso, enquanto petiscava nos taludes salpicados de orquídeas. As cabrinhas viraram à direita, nós seguimos lestos para a esquerda, descendo finalmente até à água e a este recanto fresco de sombra e verdura.
As margens desta ribeira têm amieiros, freixos e castanheiros, ladeados por bosques mais secos de azinheiras, sobreiros e zelhas. No solo notámos logo frutos de Colchicum multiflorum aninhados nas típicas rosetas de folhas longas, muitos pés de Helleborus foetidus em flor-e-fruto, e, mais perto da água, estas plantas com folhas de margens dentadas e flores da cor do vinho-tinto.
Esta herbácea anual é frequente na região mediterrânica e grande parte da Europa (a designação específica alude a Narbonne, no sul de França), mas entre nós há poucos registos dela e, dizem, algumas ameaças. O habitat que a faveta-de-Beja (nome que a Flora Ibérica assegura ser o que cá se usa para a designar) aprecia, feito de ribeiras de água límpida aconchegadas por bosques, está a desaparecer ou a fragmentar-se. Além disso, os polinizadores mais eficientes destas fabáceas, as abelhas, também não andam com a vida tranquila. E, sobretudo, com os verões mais quentes e os invernos menos chuvosos a tornarem-se regra no nordeste do país, estes cursos de água e plantas vizinhas vivem aflitos durante quase todo o ano.
Regressámos no início de Julho à ribeira do Peso, e o cenário era outro: não havia vestígios de água, o leito estava à mostra, e a vegetação rala (ou nem tanto assim, havia muita Ballota nigra) penava, como nós, ao calor. Com sorte, voltaremos lá no fim de Setembro para ver novamente a água a correr e admirar o Colchicum em flor.
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