14/08/2018

A confusão dos dentes-de-leão



Hieracium amplexicaule L.


Antes que o nomadismo (ainda que virtual) nos arraste para outras paragens, não ficaria completo este breve regresso ao Gerês se não nos detivéssemos num dente-de-leão. Nem só de caviar vive o homem, e um aspirante a botânico não pode atentar apenas nas plantas prestigiadas por uma aura de beleza ou raridade. Numa abordagem imediata, avessa a subtilezas, diríamos que os dentes-de-leão nada têm de raro. Quanto à beleza, depende de quem vê, pois há gostos para tudo. Se eles vivem em relvados urbanos, despontam entre as rachas dos passeios, proliferam em terrenos baldios e em jardins mal amanhados, e conseguem ainda aparecer em bosques, prados e praias, não parece que tenham a sobrevivência ameaçada.

Acontece que, nessa designação imprecisa de dentes-de-leão, cabem coisas muito diversas: a saber, todas as (inúmeras) asteráceas de capítulos amarelos em que estes são compostos apenas por florículos ligulados — não havendo, como nas margaridas (outro nome demasiado abrangente), uma diferença clara entre os florículos que formam o disco central e aqueles que dão as "pétalas". Os dentes-de-leão mais frequentes em ambientes ruderais pertencem aos géneros Taraxacum, Leontodon, Hypochaeris, Sonchus e Crepis. Mesmo dentro destes géneros mal-afamados há espécies que frequentam ambientes mais selectos (como o Crepis lampsanoides, que aparece em carvalhais) e outras que, tendo-se desenvolvido em habitats peculiares, alcançaram inegável prestígio: no género Leontodon há três formosos endemismos açorianos; e, na Madeira e nas Canárias, os Sonchus cresceram e multiplicaram-se até ficarem irreconhecíveis, com muitas espécies transformando-se em árvores.

O dente-de-leão que fotografámos entre as rochas, no estradão dos Carris, pertence ao género Hieracium, famoso pela sua dificuldade. É um género em que os não-especialistas se devem abster de dar palpites sobre a identificação das espécies. Certezas? Só aquelas que a alegre inconsciência permite, e por isso apenas ao alcance dos principiantes mais absolutos.

Bem prega Frei Tomás, pois afinal as fotos vêm etiquetadas como sendo do Hieracium amplexicaule. Se o escriba não tem certezas, arroga-se pelo menos o direito de mandar palpites. Como desculpá-lo? Das cerca de seiscentas espécies de Hieracium que se admite ocorrerem na Península Ibérica, os especialistas identificaram umas 26 principais que por sucessivos cruzamentos terão dado origem a todas as outras. Cada espécie principal estaria assim rodeada por uma constelação de espécies secundárias semelhantes em cuja progenitura esteve envolvida. Entre as espécies principais, o Hieracium amplexicaule é distintivo por ser densamente glanduloso em todas as suas partes (o que o torna muito pegajoso), e por ter as folhas superiores abraçando o caule (é esse o significado de amplexicaule). A espécie vive em zonas pedregosas de montanha, descrição que encaixa sem favor no habitat ocupado pela planta geresiana, ajudando a reforçar o palpite. As dimensões também parecem correctas, atingindo o H. amplexicaule uns 40 cm de altura máxima (ou, excepcionalmente, até 55 cm).

Assim, se a planta do Gerês não for H. amplexicaule, será pelo menos filha ou neta dessa espécie — ou talvez filha e neta, pois vergonha é coisa que as plantas desconhecem. Está em flor em meados de Junho. Também a vimos, ou ingenuamente a julgámos ver, no topo da serra do Marão, florescendo aí umas semanas mais tarde.

1 comentário :

bea disse...

Não são lindos, nascem por todo o lugar e pertenço ao número dos que não sabem distinguir entre as variedades possíveis. E no entanto gosto de vê-los. São vida. E têm certo ar alegre.