25/04/2019

Alhos no deserto



Pressente-se hoje uma maior inquietação em (quase) todos nós com as alterações a que vamos assistindo no clima do planeta. E estamos (quase) todos mais conscientes do nosso poder de mudar o ambiente, colocando em grande perigo a biodiversidade na Terra, e da nossa falta de controle do impacto na natureza do que fazemos. Os mais velhos, que durante anos confiaram que o anticiclone dos Açores lhes asseguraria água na horta e sol na vinha na época e doses adequadas, falam de um tempo em que as estações se cumpriam com mais certeza, de invernos frios e primaveras chuvosas a que se seguiam verões bonançosos. Dirão outros, com a serenidade dos crédulos, que o mundo nunca parou de mudar. Pois sim, mas a velocidade a que se tem estragado nas últimas décadas parece estar a conduzir-nos para uma crise ambiental sem precedentes. Acalentamos, claro, a esperança de que tudo não passe de um engano da ciência, que desautorizamos; de que o planeta, embora imperfeito, guarde uns truques na manga que nos salvaguardarão de um fim dramático; de que a previsão de aridez num futuro próximo para o centro e sul do nosso país não passe de uma opinião alarmista e sem fundamento. Justificamos mesmo algum optimismo afirmando que até nos desertos continua a haver vida interessante. É verdade que em muitos habitats quase desérticos encontramos plantas e animais bem adaptados. Levaram decerto muitos milhões de anos a sintonizar os seus ciclos de vida com as novas exigências ambientais e, desse modo tranquilo e sem pressa, conseguiram ser bem sucedidos. Porém, é óbvio que um tal processo, necessariamente lento, de evolução genética e morfológica não funciona se as espécies se extinguirem com um abalo cruel e repentino no habitat. E esse é um dos maiores riscos actuais para a vida na Terra: que as alterações climáticas transformem demasiado depressa a maioria dos habitats em lugares inóspitos, onde é difícil sobreviver, sem que haja tempo para que as várias espécies se adaptem ou colonizem nichos mais favoráveis.

Já aqui vos revelámos que uma parte da flora do Mediterrâneo e do norte de África parece ter conseguido refugiar-se nas ilhas da Madeira e das Canárias após mudanças significativas do clima nestas regiões, que terão ocorrido há milhões de anos. Pode dar-se o caso de ter sido essa a origem da planta que hoje vos mostramos, um endemismo de Fuerteventura e Lanzarote. As fotos foram tiradas em El Jable, no norte de Lanzarote, durante o Inverno.


Androcymbium psammophilum Svent.



De longe, o aspecto das flores e das folhas em roseta lembra um alho (ora veja como se assemelha ao Allium chamaemoly, que ocorre na Estremadura e no Baixo Alentejo); olhando com atenção, alguns notam maior parecença com as plantas do género Colchicum, e de facto esta planta é conhecida em espanhol como açafrão de El Jable. É uma herbácea perene de porte rasteiro, com folhas lineares glaucas e inflorescências quase sésseis de 3 a 6 flores. As tépalas são brancas, aqui e ali riscadas de vermelho, e a cada uma parece estar colado um estame (como pode ver na 2ª foto). Esta planta precisa de solos arenosos em planícies semi-áridas, característica que os taxonomistas registaram no epíteto psammophilum, pois psammos é o termo grego para areia e philos significa apreciar. Consta da lista vermelha da flora em perigo, ameaçada que está pela expansão do urbanismo, pela extracção de areias ou pelo apetite de cabras e ovelhas.

Algumas Floras atribuem o nome comum men-in-a-boat às espécies do género Androcymbium, palavra que une andros (homem) a kymbe (barco). Podem ver no portal da Flora Silvestre del Mediterráneo algumas imagens de outras das cerca de 60 espécies conhecidas de Androcymbium. A maioria delas é nativa de África, e apenas uma ocorre no continente europeu: o A. europaeum, do sul de Espanha e Marrocos. Tanta variedade e formosura (não concorda?) são o resultado de uma evolução demorada e sem sobressaltos, através de um mecanismo natural e hábil de sobrevivência na Terra que a gestão dos dias de hoje está irresponsavelmente a condenar.

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