17/04/2019

Histórias da Lista Vermelha: Senecio bayonnensis

Senecio bayonnensis Boiss. [sinónimo: Senecio nemorensis subps. bayonnensis (Boiss.) Nyman]


Há plantas que passam despercebidas pela sua pequenez ou pela modéstia das suas flores, mas desta erva-loira (como é uso chamarmos às compostas do género Senecio), capaz de ultrapassar a altura de um adulto e senhora de uma floração exuberante, dir-se-ia que o mais difícil é não a ver. No entanto, quando em Julho de 2018 o biólogo Paulo Pereira, membro da equipa da Lista Vermelha da Flora de Portugal, a encontrou em Castro Daire, foi a primeira vez que alguém por cá a observou a sul do Douro. Até então, a planta só era (mal) conhecida nos arredores da aldeia de Alcobaça, em Melgaço, no extremo norte do país. E o que se encontrou não foram dois ou três exemplares refugiados num esconso só acessível por maus ou inexistentes caminhos. Entre as aldeias de Almofala e Bustelo, um rio Varosa ainda na infância, vigiado por uma estrada que lhe acompanha as voltas, serpenteia tranquilamente no seu planalto à sombra de freixos e amieiros, rodeado por lameiros e cultivos. Nenhum pescador (se houver que pescar, e se a pesca for autorizada) terá dificuldade em escolher nas suas margens poiso que lhe agrade. Quem diria que um rio assim plácido se prepara (ou preparava, quando não havia barragens) para uma descida tumultuosa até ao Douro? Pois é nesse troço manso do rio, ao longo de quase dois quilómetros, que este Senecio bayonnensis vai aparecendo com infalível regularidade, aqui e ali aproveitando algum abandono dos campos para reforçar um contingente que atinge as centenas de exemplares. Há que dizê-lo: plantas deste tamanho às centenas vêem-se demasiado bem. Como é possível que até 2018 ninguém tenha dado por elas?

Portugal sempre teve um défice de naturalistas — ou seja, de pessoas que, à paixão esclarecida (passe o paradoxo) pelas coisas da natureza, aliem o interesse em conhecer o seu país; pessoas que não se fiquem pelo deslumbre fácil com a paisagem e sejam capazes de nomear os elementos que a compõem. Os locais mais atraentes (Gerês, Estrela, Algarve, vale do Douro) ou mais acessíveis (faixa litoral do país) do nosso território monopolizaram durante muitas décadas o interesse dos profissionais, e o resultado é que sobram ainda vastas parcelas por explorar e segredos por descobrir. Mas os profissionais não chegam para as encomendas, e na maioria dos países civilizados o conhecimento detalhado da distribuição dos "valores naturais" depende sobretudo do contributo de amadores. Em Portugal, portais como o Flora-On têm-nos vindo a aproximar a passos largos dessa salutar meta.

A julgar por tão eloquente amostra, é de supor que o maciço de Montemuro seja dessas parcelas do país que os botânicos (profissionais ou amadores) esqueceram — ou, se não esqueceram, terão explorado de forma pouco sistemática. A juntar a essa razão geral há uma questão prática: mesmo uma planta tão conspícua como o Senecio bayonnensis pode não ser avistada se não passarmos por ela na época certa; neste caso, entre Julho e Agosto, quando está em flor.

Na Alcobaça de Melgaço não há mosteiro, mas um rio, de seu nome Trancoso, que, apesar de estreito e com menos de dez quilómetros de extensão, tem a glória de ser 100% internacional, assegurando a fronteira entre o Minho e a Galiza ao longo de todo o seu percurso. É nas margens do rio, e também na orla dos campos e bermas de caminhos em redor da aldeia, que se concentra a população nortenha do Senecio bayonnensis. Foi nessa mesma Alcobaça que Gonçalo Sampaio viu e colheu a planta em 1919, e é uma boa notícia que um século depois a população se mostre tão vigorosa. Curiosamente, no mesmo concelho de Melgaço, dois ou três quilómetros a sul, já dentro do Parque Nacional da Peneda-Gerês, vegeta a única população portuguesa de uma outra erva-loira de grande porte, o Senecio doria. As duas plantas distinguem-se facilmente pelas folhas: de margens inteiras e quase todas basais no S. doria, de margens dentadas e distribuídas de alto a baixo do caule no S. bayonensis.

Apesar de a existência destas espécies no nosso país estar documentada desde os tempos de Sampaio, não tem sido pequena a confusão à volta delas. João do Amaral Franco (Nova Flora de Portugal, vol. II, 1984) nega a ocorrência de S. doria em Melgaço e afirma que só a outra erva-loira, a que ele chama S. nemorensis subsp. fuchsii, está presente em Portugal. São dois os erros cometido por Franco; o segundo deles (o nome atribuído à planta) tem sido reproduzido por muitos autores e foi incorporado na Checklist da Flora de Portugal publicada em 2010. A obra Flora Europaea (de que a de Franco é uma tradução adaptada) reconhece, no seu vol. IV (1976), duas subespécies de S. nemorensis: a subsp. nemorensis e a subsp. fuchsii. Uma observação atenta não deixa dúvidas de que as plantas presentes no nosso país apresentam caracteres morfológicos mais próprios da subespécie nominal do que da subsp. fuchsii (as brácteas suplementares são tão ou mais compridas do que o invólucro; as folhas são largas, com uma relação comprimento-largura muito inferior ao valor 5-7 indicado para a subsp. fuchsii; e a parte superior dos caules é pubescente). É pois de crer que Franco, ao decretar que o que há em Portugal é a subs. fuchsii, nem sequer cuidou de examinar os exemplares de herbário.

Entretanto, houve alguma evolução no tratamento taxonómico do S. nemorensis e espécies aparentadas. O nome actualmente aceite para a planta que ocorre na Península Ibérica (e que é um quase-endemismo ibérico, existindo em França apenas na região de Baiona) é Senecio nemorensis subps. bayonnensis, que alguns preferem tratar como espécie autónoma sob o nome de Senecio bayonnensis. (Na Flora Europaea, S. nemorensis subps. bayonnensis é considerado sinónimo de S. nemorensis subps. nemorensis.)

Mesmo com a descoberta da população de Casto Daire, esta erva-loira continua a ser extremamente rara e vulnerável em Portugal. À luz dos critérios da UICN, a equipa da Lista Vermelha considera que esta espécie está "Em Perigo". Independentemente do nome e do estatuto taxonómico que se lhe atribua, é merecedora do mais alto grau de protecção.

1 comentário :

Francisco Clamote disse...

Muito interessante. Grato.