08/04/2019

Histórias da Lista Vermelha: Succisella carvalhoana



Succisella carvalhoana (Mariz) Baksay



Uma Lista Vermelha de espécies, sejam elas animais ou vegetais, indica aquilo que, por estar em risco de desaparecer num certo território, é merecedor de protecção. Idealmente, tal protecção passaria por medidas activas de conservação: recuperação de habitats, reforços populacionais, minimização de ameaças. Em Portugal, onde ao descaso pela natureza se junta a falta de dinheiro, é de recear que essa protecção se fique apenas, na generalidade dos casos, pela recomendação de não se destruir. O que, valha a verdade, já não seria mau. Se algum dia uma barragem no nosso país deixar de ser construída para não se afogarem plantas ameaçadas, então já terá valido a pena elaborar a Lista Vermelha da Flora Vascular de Portugal Continental (LFV), projecto agora em curso que estará concluído no próximo mês de Junho.

Portugal será então o último país europeu (pelo menos o último da União Europeia) a dispor de uma Lista Vermelha da Flora. Durante os anos de construção desenfreada de auto-estradas, barragens e parques eólicos, as únicas espécies vegetais com algum grau de protecção eram as que constavam dos anexos da Directiva Habitats, datada de 1992 mas com vários aditamentos posteriores. Muitos botânicos se queixaram do desfasamento entre essa directiva europeia e o verdadeiro grau de ameaça das espécies presentes em território português: embora algumas espécies indiscutivelmente raras fossem protegidas, a grande maioria delas ficou de fora; e várias das espécies listadas na Directiva não justificam qualquer protecção especial (um exemplo óbvio é a gilbardeira).

Uma das plantas esquecidas pela Directiva Habitats é a Succisella carvalhoana. Atendendo ao habitat paludoso e à semelhança com as plantas do género Scabiosa, a cuja família aliás pertence, não será desajustado chamar-lhe escabiosa-dos-pauis. As diferenças mais marcantes para as verdadeiras escabiosas estão nas flores de quatro pétalas (em vez de cinco) e nos frutos (compare as fotos acima com esta). No âmbito da LFV, a escabiosa-dos-pauis, como todas as mais de 600 plantas-alvo do projecto, foi avaliada à luz dos critérios da UICN, e ficará com o estatuto de "Em Perigo".

Descrita em 1890 por Joaquim Mariz, botânico na Universidade de Coimbra, sob o nome de Succisa carvalheana, a escabiosa-dos-pauis habitava margens de lagoas, charcos temporários, valas e outros lugares alagadiços da faixa litoral entre o Mondego e o Douro. Enfim, um tipo de habitat que, por força da expansão urbana e do aproveitamento agrícola e florestal dos terrenos, tem recuado a grande velocidade numa das zonas mais povoadas do país. A planta já existiu em Vila Nova de Gaia (onde foi colhida pela última vez em 1979), em Coimbra e em diversos outros lugares onde hoje é impensável encontrá-la. Foi de tal ordem a destruição que até há poucos meses o seu último reduto conhecido era junto à Pateira de Fermentelos, onde na mais recente visita foram contadas quatro plantas. Em 2004, os espanhóis Francisco Amich, Juan A. Devesa e Sonia Bernardos, autores do artigo Taxonomic revision of the genus Succisella (Dipsacaceae) in the Iberian Peninsula, não lograram encontrar a planta em nenhuma das localidades portuguesas onde ela havia sido assinalada.

A boa notícia é que as nossas fotos não foram tiradas na Pateira de Fermentelos, e que nesse outro local, algures entre Vagos e Cantanhede, eu e a Maria encontrámos centena e meia de exemplares da planta, espalhados por uma área ampla entre charcos, matos baixos, salgueirais e plantações de eucaliptos. A produção de flores e frutos era abundante; e, a menos de catástrofe ou de intervenção destrutiva em larga escala, a planta dificilmente desaparecerá dessa zona.

O sumiço quase completo da Succisella carvalhoana originou um episódio invulgar: uma outra planta do género Succisella, essa existente em Espanha, fez-se passar por ela numa autêntica usurpação da identidade. Em 1980, uma dita «Succisella carvalhoana» foi detectada em Espanha, na província de Salamanca, e mais tarde a mesma planta foi reencontrada em várias outras províncias espanholas. Ninguém parece ter posto em dúvida essa identifcação, e quando foi feita a revisão do género Succisella para a Flora Iberica (pelos autores do artigo atrás referido) as plantas do litoral português não foram tidas em conta, por não terem sido encontrados exemplares vivos. Resultado? A descrição da Succisella carvalhoana nessa obra não se ajusta às plantas portuguesas, as únicas que legitimamente podem usar esse nome.

No vol. 2 (de 1984) da sua Nova Flora de Portugal, Franco informa que as folhas caulinares da planta são lineares ou linear-lanceoladas, enquanto que a Flora Iberica descreve as folhas caulinares médias como "linear-lanceoladas, de pinatífidas a pinatissectas". Esse carácter pinatífido ou pinatissecto das folhas é omitido não apenas por Franco, mas também por Xavier Coutinho (Flora de Portugal, 2.ª ed., 1939), que informa serem as folhas caulinares "inteiras ou subinteiras"; e, além disso, também não há menção dessa característica na descrição original da planta por Joaquim Mariz.

As plantas existentes no litoral português, e que serviram de base às descrições de Mariz, Coutinho e Franco, apresentam folhas caulinares invariavelmente inteiras, facto que confirmámos tanto nos exemplares vivos como (por amabilidade de Filipe Covelo) nos que estão guardados no herbário da Universidade de Coimbra. Por outro lado, as plantas espanholas já apresentam folhas caulinares médias pinatífidas ou pinatissectas. Além disso, as folhas basais das primeiras são muitas vezes obovado-espatuladas, enquanto que as das segundas são quase sempre lanceoladas. Outra diferença importante está no invólucro dos frutos, que são de um vermelho carregado nas plantas espanholas e de uma cor amarelada próxima do bege nas plantas do litoral português.

Quando o equívoco for desfeito, a verdadeira Succisella carvalhoana recuperará o seu legítimo estatuto de endemismo português, e a usurpadora terá que adoptar outro nome. Mas essa outra planta não ficará a ser um endemismo espanhol, visto que em 2017 a botânica Adelaide Clemente a encontrou do lado de cá da fronteira, no concelho do Sabugal. As fotos da «Succisella carvalhoana» que constam do portal Flora-On são dessa planta raiana, e poderão servir ao leitor para conferir as diferenças.

1 comentário :

Francisco Clamote disse...

Mais que excelente. Parabéns, Paulo!