12/04/2025

Ilha de assobios



Quando dos lábios nos sai um assobio imitando os acordes da última cançoneta que se nos infiltrou na cabeça, estamos, ainda que involuntariamente e sem destinatário definido, a comunicar. Todos os gestos que fazemos e actos que praticamos são formas de comunicação: reportam sobre o que nos vai na mente, mesmo que ninguém esteja interessado em decifrar tal informação. Dito isto, reconheça-se que tais formas de comunicar só costumam transmitir informações rudimentares: que estamos alegres ou tristes ou distraídos, ou que vimos algo que nos enfureceu ou assustou. Haver uma linguagem elaborada toda ela feita de assobios, por exemplo, já suscita reacções de dúvida e estranheza: não será história inventada por ficcionistas? Trata-se até de enredo assaz batido, o da linguagem secreta usada por um grupo de resistentes (ou por um povo oprimido) para se organizar na luta contra a tirania.

É sabido que em La Gomera existe ou existiu uma linguagem de assobios, herdada dos Guanches que habitaram a ilha antes da colonização espanhola. A orografia explicaria essa evolução, já que transpor os muitos barrancos que sulcam a ilha é complicado, e os assobios se ouvem melhor ao longe do que os gritos das mais estridentes cordas vocais. Por razões análogas, os povos indígenas norte-americanos inventaram a comunicação por tambores ou por sinais de fumo, e sobre estes meios os assobios têm a vantagem da portabilidade: a qualquer momento, sem necessidade de acender fogueiras ou de carregar tambores às costas, cada assobiador está apto a enviar as suas mensagens.

Agora que a distância não é óbice à comunicação, nem há opressores de quem esconder o que é comunicado, é natural que os assobios de La Gomera tenham caído em desuso, ou só sobrevivam como produto turístico. E talvez o assobiador para turista ouvir já nem se preocupe em compor mensagens com nexo, pois afinal ninguém o entende. Certa vez, na nossa visita à ilha, um senhor idoso assobiou para nós — ou falou connosco aos assobios. Parecia afável, pode apenas ter-nos desejado bom dia, mas a mensagem não passou.

Silene bourgeaui Webb ex Christ


Podemos contudo confirmar que em La Gomera existe um assobio que é próprio da ilha e não se encontra em mais sítio nenhum. Não é um assobio sonoro, mas sim vegetal, e o reconhecimento da sua existência só está ao alcance dos falantes de português. Chamando nós assobios às plantas do género Silene, a esta Silene bourgeaui só podemos dar o nome de assobio-de-La-Gomera, enquanto que os espanhóis, a quem igual trocadilho está vedado, lhe chamam insipidamente canutillo gomero.

A Silene bourgeaui é um pequeno arbusto de base lenhosa, com hastes floríferas erectas de uns 30 cm de altura. As flores são brancas, viradas para cima, e no aspecto geral este assobio é bem mais compacto e arrumadinho do que a S. pogonocalyx, outro endemismo canarino (esse de La Palma e de El Hierro) que já aqui mostrámos. A S. bourgeaui floresce entre Fevereiro e Maio, e vive em escarpas rochosas do centro e norte de La Gomera. Encontrámo-la em boa quantidade na Fortaleza de Chipude, que é um respeitável maciço rochoso sobranceiro à povoação com o mesmo nome.

Sem comentários :