Selvagem procura-se
Misopates salvagense D. A. Sutton
O Misopates salvagense não é candidato a nenhuma medalha de mérito da Royal Horticultural Society. As suas minúsculas e escassas flores brancas, timidamente raiadas de rosa, são de pobre efeito ornamental, embora denunciem o parentesco com as populares bocas-de-lobo (Antirrhinum majus). O que há de mais notável nesta planta é que ela não esteja extinta e seja possível observá-la com alguma facilidade. Pela nossa parte, encontrámo-la em Dezembro de 2018 na costa sudoeste de Lanzarote, nos arredores de El Golfo, em clareiras de matos dominados por tabaibas (Euphorbia balsamifera).A primeira descrição da planta surgiu apenas em 1988, incluída em A revision of the tribe Antirrhineae, monografia de 575 páginas sobre bocas-de-lobo e plantas afins da autoria de David A. Sutton. Para descrever a nova espécie, o autor baseou-se num único exemplar de herbário, sem flores nem folhas, que havia sido colhido na Selvagem Grande 120 anos antes, algures entre 1860 e 1867. A planta não mais voltou a ser vista nas Selvagens e não foram localizados outros exemplares em herbários. Os frutos e sementes desse exemplar único distinguiam-no claramente dos Misopates conhecidos, mas a descrição da nova espécie foi necessariamente lacunar, e era grande a probabilidade de ela já se encontrar extinta.
Até que, já neste século, a planta foi reencontrada não já nas Selvagens mas nas Canárias, nas ilhas de El Hierro, Fuerteventura e Lanzarote. No artigo onde se dá a notícia [Apuntes florísticos y taxonómicos para la flora de las Islas Canarias, Acta Botánica Malacitana 34 (2009): 242-251 — PDF], os autores reportam que o Misopates salvagense é frequente em zonas costeiras áridas de Lanzarote e Fuerteventura, e que antes ele terá sido confundido, nessas ilhas, com o Misopates orontium. Este último está presente em todas as ilhas do arquipelago canário, mas tem flores maiores, em geral cor-de-rosa, e é densamente glanduloso na inflorescência.
De endemismo nado-morto das ilhas Selvagens, o Misopates salvagense passou assim a ser um elemento relativamente banal da flora nativa canária. Talvez o exemplar colhido no século XIX nas Selvagens represente um episódio fortuito: sementes arrastadas pelo vento desde as Canárias que germinaram mas não lograram estabelecer uma população permanente. Ou talvez a Selvagem Grande seja mesmo o berço da espécie, e ela tenha tido a sorte de colonizar as Canárias antes de se extinguir na sua ilha de origem por acção dos herbívoros (cabras, coelhos e murganhos) lá introduzidos. É muito improvável que o mistério alguma vez seja deslindado.
Sem comentários :
Enviar um comentário