Meninos ao léu
O Natal é tempo de paz, tempo de amor, tempo de lamentar a existência de pessoas como eu. Não admira que seja uma época que toda a gente aprecia. No dia que assinala o nascimento do salvador, o cardeal-patriarca não resistiu a lembrar que há quem não tenha salvação possível. Acaba por ser uma observação animadora. Se alguma coisa pode transtornar quem mereceu um lugar no paraíso é o facto de haver fila para entrar. Pois bem, eu serei menos um a obstruir os portões do céu: na homilia da missa de 25 de Dezembro, D. José Policarpo saudou os judeus e todos os que acreditam num Deus único — mas, ostensivamente, não me saudou a mim, que sou ateu. Os judeus acreditam tanto como eu que o menino cujo aniversário se celebrava é o filho de Deus. No entanto, receberam uma saudação. Para mim, nem um caridoso aceno de cabeça.
O ateísmo tem sido, para mim e para tantos outros incréus, a luz que me tem conduzido na vida. Às vezes fraquejo, em momentos de obscuridade e de dúvida, mas, mesmo sendo incapaz de provar a inexistência de Deus, tenho conseguido manter a fé — uma fé íntima fundada numa peregrinação que tem a grandeza e a humildade da longa caminhada da vida — em que Ele não exista. Todos os dias busco a não-existência do Senhor com renovada crença, ciente de que a Sua inexistência é misteriosa demais para que eu a tenha inventado.
É certo que o mesmo D. José Policarpo já havia dito que o ateísmo era o maior drama da humanidade — acima da fome, da guerra e do próprio time-sharing. Fê-lo, porém, em data menos misericordiosa. Sonegar saudações no Natal é particularmente cruel. O anátema mais duro é o que é lançado no tempo do perdão. Estou habituado a receber anátemas e garanto aos menos experientes que os anátemas natalícios são os que aleijam mais. Em todo o caso, no fundo eu sei bem que não sou digno de ser saudado. Acreditar que Deus existe é uma convicção profunda, mas acreditar que não existe, curiosamente, não o é. Alguém, munido de um aparelho próprio, mediu a profundidade das convicções e deliberou que as do crente são mais fundas que as do ateu. Quando alguém diz acreditar em Deus, está a exprimir legitimamente a sua fé; quando um ateu ousa afirmar que não acredita, está a agredir as convicções dos crentes. Ser crente é merecedor de respeito, ser ateu é um crime contra a humanidade. Ainda assim, esperava ter sido saudado. Eu não acredito em Cristo, mas sempre acreditei nos cristãos. É a primeira vez que vejo um deles recusar ao menos uma saudação a um pecador.
Ricardo Araújo Pereira, Paz e amor para todos menos para mim (Visão, 30/XII/2009)
8 comentários :
Excelente texto do RAP. Obrigada, Maria.
Pela flor também :-)
Espetáculo! Que flor original, não conhecia! Embora com a difusão do conhecimento que existe hoje em dia sobre espécies de todo o mundo, estou constantemente a ser surpreendido, como fui agora.
Obrigado!
Há muita gente (como eu) a realçar a bem disposta genialidade do RAP, portanto não é necessário caotizar este valioso blogue com vulgares copy-pastes. Atrevo-me a pedir que o evitem e se mantenham no tema.
Feliz Natal!
Obrigada, Gi.
Rúben: Esta forma de flores brancas é rara, tivemos sorte em a encontrar. E só vimos este exemplar.
Anónimo: Nenhum texto aqui transcrito é alheio ao tema do blogue. Se relacionar a orquídea das fotos e o texto, conseguirá entender a nossa escolha.
Ser católico ou mais genericamente, cristão ou muçulmano ou budista ou outra de outra religião qualquer é uma escolha que se faz, ser ateu não. Ser ateu é porque não se consegue acreditar sem questionar.
Tal como muito bem mostram, a natureza evolui de diversifica-se sem fronteiras ou dogmas.
Bem dito, amag.
Embora tenha sido educada na fé católica e até tenha praticado com fervor a doutrina inerente, já deixei de acreditar há muito no Deus da Igreja Católica e ainda mais na sua Igreja, que continua prepotente, intolerante e cega.
Este blogue que me encantou quando dei por ele - ontem - tem tudo a ver com a fé que creio existir dentro de mim, uma espécie de panteísmo, a existência de Deus em tudo o que nos rodeia, sobretudo naquilo que não foi criado pelo Homem.
A Natureza, incluindo as plantas de um modo especial, tem um grandeza que na minha óptica se iguala à duma divindade. Por isso a respeito , por isso a amo, por isso não posso viver sem a ver todos os dias.
O texto publicado, que não tinha lido antes e é uma censura magoada, tem uma relação com este blogue, na medida em que realça o valor daquilo ou daqueles que geralmente se ignoram. Quem conhece estas plantas? Poucos. E no entanto, elas existem, são palpáveis, estão neste mundo. Serão elas presença de Deus? Não sei, mas acredito que sim.
O seu comentário, que agradeço, recordou-me uma passagem desconcertante do Livro de Job. Nela, Job brande razões contra as calamidades que se abatem sobre ele, e protesta com Deus que não isenta os justos de aflições. Este sugere-lhe que olhe para um hipopótamo. O diálogo é intrigante porque mais facilmente escolheríamos uma orquídea, digamos, ainda que albina, do que este bicharoco para simbolizar a obra-prima de Deus. Há quem admire o humor divino nesta criação. Outros, incapazes de conciliar o mal com a existência de um deus poderoso e perfeito, reconhecem aqui uma lição: a natureza (ou o bem), e não apenas o mal, é uma adivinha.
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