02/12/2010

Troca de ruminantes

Elaphoglossum semicylindricum (Bowdich) Benl


Os cavalos voadores que povoavam os contos de fadas extinguiram-se irremediavelmente, e enquanto existiram parecem não ter vencido grandes distâncias. Se tivessem chegado aos Açores, talvez os equídeos seus descendentes, já sem asas, habitassem as ilhas antes da lá aportarem os colonizadores europeus. E é essa dificuldade dos animais terrestres em transpor pelos seus próprios meios as lonjuras do Atlântico que explica por que é tão pobre em mamíferos a fauna autóctone açoriana: só há registo de um, o morcego Nyctalus azoreum, aliás representado no logótipo dos Montanheiros.

Não existindo os bichos, existem ainda assim plantas que evocam aspectos da anatomia animal. E talvez porque, abstraindo da cor e da espessura, uma folha longilínea e de margens lisas faça sempre lembrar uma língua, é ela um dos orgãos preferidos para imitação. Tem pois o selo da inevitabilidade que nos Açores também surja um expressivo contingente de línguas vegetais.

Se quisermos ser rigorosos, devemos traduzir a palavra grega Elaphoglossum como língua-de-cervo, entendendo-se aqui por cervo qualquer mamífero da família dos cervídeos: veado, alce, corça, etc; só um conhecedor da fauna da antiga Grécia poderá decidir a qual destes animais se refere o nome científico do feto. Mas língua-de-vaca, o nome comum que para ele é proposto, é uma falsificação grosseira, pior que gato por lebre. Talvez o mesmo pavor da brejeirice transatlântica que levou em Portugal ao desaparecimento das bichas (substituídas pelas filas) tenha banido das ilhas as línguas-de-veado. Ruminante por ruminante, foram as vacas, dominando tudo quanto é pastagem com uma placidez quase indiana, que venceram a disputa.

A língua-de-vaca — verguemo-nos pois ao uso corrente — é um feto epífito, companheiro do Hymenophyllum tunbrigense (que aliás espreita na 2.ª foto), com frondes inteiras de uns 20 cm de comprimento semelhantes a... hum... línguas. Talvez para reforçar tal comparação, ambas as faces das frondes exibem numerosas escamas castanhas à laia de papilas gustativas. Endémico da Madeira e dos Açores, este feto está porém ausente das ilhas de Santa Maria, Graciosa e Corvo. É mais comum acima dos 500 metros de altitude, brotando das densas camadas de musgo que recobrem juníperos, loureiros e azevinhos.

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