28/04/2010

O cardo é uma lição


Cirsium vulgare (Savi) Ten.

O Jardim Botânico do Porto, como outros jardins botânicos nacionais com muitas décadas ou até séculos de existência, não é lugar para se conhecer a flora portuguesa. Tais jardins foram moldados pelo coleccionismo oitocentista, mentalidade que só nas duas ou três últimas décadas do século XX começou a ser ultrapassada. Valorizavam-se as plantas raras trazidas de lugares remotos, ou os requintados híbridos que horticultores famosos produziam nos seus hortos. Seria absurdo acolher nesses aristocráticos canteiros a flora espontânea dos nossos montes. E, além das razões de gosto, havia a questão prática: para conhecer as plantas silvestres bastava passear pelo país. Coisa muito diferente era um jardim que tinha obrigação de nos seduzir pelo exotismo.

Dois dados vieram perturbar essa tranquila certeza. O primeiro foi a banalização do exótico. Se nem todos viajam, há muitos a fazê-lo, e em qualquer caso as imagens desses lugares outrora longínquos são acessíveis a toda a gente. Para quê recriar Singapura ou o Brasil no Porto se podemos facilmente ir conferir os originais? O segundo dado foi a consciência gradual de que aquilo que era desdenhado por ser abundante ameaçava tornar-se escasso. A natureza transformou-se e rarefez-se. Para chegarmos aos tais montes atravessamos uma muralha de auto-estradas; uma vez lá, constatamos que as acácias e os eucaliptos ocuparam, de modo avassalador, as áreas onde, noutros tempos, vegetavam as plantas que os nossos jardins botânicos desprezavam. O que é raro hoje é aquilo que costumava encontrar-se à nossa porta.

Devem então os jardins botânicos tradicionais ser refeitos à luz das preocupações e dos conhecimentos actuais? De modo nenhum: o seu valor histórico, patrimonial e ambiental é inestimável. Compreender a sua génese em nada os diminui; faz-nos apenas desejar que, além desses, houvesse nas nossas metrópoles outros jardins botânicos de índole diversa, mais representativos da nossa flora.

Que tem isto a ver com o cardo acima retratado? Embora tenhamos deparado com ele no Jardim Botânico do Porto, é óbvio que ninguém o plantou. De facto, a sua existência só foi possível porque os jardineiros - que são pouquíssimos e não têm mãos a medir - se descuidaram. Mas, enquanto não o arrancaram, ele ficou a reforçar o escasso contingente da flora nacional no Botânico, o que já é um feito assinalável.

Os géneros Cirsium e Carduus têm grandes parecenças, distinguindo-se essencialmente pela penugem (ou papilho) dos frutos, que nos Cirsium é ramificada e sedosa. O cardo-roxo (Cirsium vulgare) é uma planta bienal, típica de prados e de terrenos ruderais, que pode ultrapassar um metro de altura e ocorre naturalmente na Europa, Ásia e norte de África. Emigrou ainda para os EUA, onde goza de reputação lastimável como planta daninha. Mas isso não é coisa que lhe deva importar muito.

3 comentários :

James disse...

Excelente texto, a queda do exotismo terá sido tambem a razão para a queda da popularidade dos nossos jardins botanicos? O cardo é ja ele usado por varios jardins particulares sobretudo em Inglaterra, como deve saber. Embora talvez Hibridos, são cultivados sobretudo pela sua folhagem extremamente interessante.

Paulo Araújo disse...

Obrigado pelo comentário. Há outras razões para o declínio dos nossos jardins botânicos. Uma delas, que até se poderia resolver se houvesse mecenas generosos, é a falta de dinheiro. Outra, que me parece insolúvel, é o divórcio entre os jardins botânicos e a investigação científica. Os nossos departamentos de botânica, de um modo geral, têm pouco interesse pelos jardins botânicos porque os seus docentes e investigadores têm outras prioridades. Isso só se resolveria se os jardins botânicos criassem o seus próprios corpos de investigação.

Sim, já vi cardos em jardins de Inglaterra - país onde aliás a jardinagem se vai aproximando cada vez mais da natureza. É uma excelente tendência.

bettips disse...

Jardinagem-natureza, sem desprezar o que é exótico, nos jardins botânicos. Para tantos que não viajam e gostam de "ver ao vivo".
As flores de cardo secas encontrei-as, lindas, há mais de 30 anos, numa feira em Carregal do Sal; e daí descobri "a flor de cardo" para coagular o leite. Fiquei espantada - bem é claro que gosto do roxo, lilás, etc e por isso, nem os cardos escapam!
Abçs