O cardo é uma lição
O Jardim Botânico do Porto, como outros jardins botânicos nacionais com muitas décadas ou até séculos de existência, não é lugar para se conhecer a flora portuguesa. Tais jardins foram moldados pelo coleccionismo oitocentista, mentalidade que só nas duas ou três últimas décadas do século XX começou a ser ultrapassada. Valorizavam-se as plantas raras trazidas de lugares remotos, ou os requintados híbridos que horticultores famosos produziam nos seus hortos. Seria absurdo acolher nesses aristocráticos canteiros a flora espontânea dos nossos montes. E, além das razões de gosto, havia a questão prática: para conhecer as plantas silvestres bastava passear pelo país. Coisa muito diferente era um jardim que tinha obrigação de nos seduzir pelo exotismo.
Dois dados vieram perturbar essa tranquila certeza. O primeiro foi a banalização do exótico. Se nem todos viajam, há muitos a fazê-lo, e em qualquer caso as imagens desses lugares outrora longínquos são acessíveis a toda a gente. Para quê recriar Singapura ou o Brasil no Porto se podemos facilmente ir conferir os originais? O segundo dado foi a consciência gradual de que aquilo que era desdenhado por ser abundante ameaçava tornar-se escasso. A natureza transformou-se e rarefez-se. Para chegarmos aos tais montes atravessamos uma muralha de auto-estradas; uma vez lá, constatamos que as acácias e os eucaliptos ocuparam, de modo avassalador, as áreas onde, noutros tempos, vegetavam as plantas que os nossos jardins botânicos desprezavam. O que é raro hoje é aquilo que costumava encontrar-se à nossa porta.
Devem então os jardins botânicos tradicionais ser refeitos à luz das preocupações e dos conhecimentos actuais? De modo nenhum: o seu valor histórico, patrimonial e ambiental é inestimável. Compreender a sua génese em nada os diminui; faz-nos apenas desejar que, além desses, houvesse nas nossas metrópoles outros jardins botânicos de índole diversa, mais representativos da nossa flora.
Que tem isto a ver com o cardo acima retratado? Embora tenhamos deparado com ele no Jardim Botânico do Porto, é óbvio que ninguém o plantou. De facto, a sua existência só foi possível porque os jardineiros — que são pouquíssimos e não têm mãos a medir — se descuidaram. Mas, enquanto não o arrancaram, ele ficou a reforçar o escasso contingente da flora nacional no Botânico, o que já é um feito assinalável.
Os géneros Cirsium e Carduus têm grandes parecenças, distinguindo-se essencialmente pela penugem (ou papilho) dos frutos, que nos Cirsium é ramificada e sedosa. O cardo-roxo (Cirsium vulgare) é uma planta bienal, típica de prados e de terrenos ruderais, que pode ultrapassar um metro de altura e ocorre naturalmente na Europa, Ásia e norte de África. Emigrou ainda para os EUA, onde goza de reputação lastimável como planta daninha. Mas isso não é coisa que lhe deva importar muito.
3 comentários :
Excelente texto, a queda do exotismo terá sido tambem a razão para a queda da popularidade dos nossos jardins botanicos? O cardo é ja ele usado por varios jardins particulares sobretudo em Inglaterra, como deve saber. Embora talvez Hibridos, são cultivados sobretudo pela sua folhagem extremamente interessante.
Obrigado pelo comentário. Há outras razões para o declínio dos nossos jardins botânicos. Uma delas, que até se poderia resolver se houvesse mecenas generosos, é a falta de dinheiro. Outra, que me parece insolúvel, é o divórcio entre os jardins botânicos e a investigação científica. Os nossos departamentos de botânica, de um modo geral, têm pouco interesse pelos jardins botânicos porque os seus docentes e investigadores têm outras prioridades. Isso só se resolveria se os jardins botânicos criassem o seus próprios corpos de investigação.
Sim, já vi cardos em jardins de Inglaterra - país onde aliás a jardinagem se vai aproximando cada vez mais da natureza. É uma excelente tendência.
Jardinagem-natureza, sem desprezar o que é exótico, nos jardins botânicos. Para tantos que não viajam e gostam de "ver ao vivo".
As flores de cardo secas encontrei-as, lindas, há mais de 30 anos, numa feira em Carregal do Sal; e daí descobri "a flor de cardo" para coagular o leite. Fiquei espantada - bem é claro que gosto do roxo, lilás, etc e por isso, nem os cardos escapam!
Abçs
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