Orquídea dos colarinhos
Jamais permitiria que seu marido fosse para o trabalho com a roupa mal passada, não dissessem os colegas que era esposa descuidada. Debruçada sobre a tábua com olho vigilante, dava caça às dobras, desfazia pregas, aplainando punhos e peitos, afiando o vinco das calças. E, a poder de ferro e goma, envolta em vapores, alcançava o ponto máximo da sua arte ao arrancar dos colarinhos liso brilho de celulóide.
Impecável, transitava o marido pelo tempo. Que, embora respeitando ternos e camisas, começou sub-repticiamente a marcar seu avanço na pele do rosto. Um dia notou a mulher um leve afrouxar-se das pálpebras. Semanas depois percebeu que, no sorriso, franziam-se fundos os cantos da boca.
Mas foi só muitos meses mais tarde que a presença de duas fortes pregas descendo dos lados do nariz até a boca tornou-se inegável. Sem nada dizer, ela esperou a noite. Tendo finalmente certeza de que o homem dormia o mais pesado dos sonos, pegou um paninho húmido e, silenciosa, ligou o ferro.
Marina Colasanti, Um espelho de Marfim e Outras Histórias (Figueirinhas, 2004)
9 comentários :
lindissimas realmente...quem diria que temos tão belas e diferentes especies de orquideas no continente. Estava mesmo convencido que as orquideas eram todas especies tropicais ou semi torpicais...
Na região do Alto-Douro, onde habito, esta é uma das orquídeas aí existentes.
Só há poucos anos despertei para a sua existência!
Já tentei cultivar esta espécie, quer por transplante, quer por semente, mas os meus esforços foram inglórios.
Que história assustadora :-o
muitas das orquídeas formão associações com fungos existentes no solo onde crescem espontaneamente, e isso por vezes é o factor mais limitante para o seu cultivo noutros locais. Mas talvez também seja muito sensível ao transplante ou a mudança de condições ambientais, ou antes ainda a um conjunto disto tudo.
Há uma orquídea muito parecida com esta, mas de flores vermelhas, que é a Cephalanthera rubra. Supõe-se que ocorre em Portugal, precisamente no Alto Douro, mas é muito rara. O Rafael alguma vez a viu?
Paulo,
a Cephalanthera rubra nunca a vi.
Cumprimentos.
É isso tudo, como diz, James.
Gi: Veio esta história a propósito da nossa "ideia fixa" com as orquídeas silvestres... No texto, reconhecemos no último parágrafo que o que até aí lemos como um virtuoso cumprimento do dever por esposa prendada - socialmente tão elogiado - é de facto uma obsessão aterradora.
Que giro!!
Ainda no outro dia fotografei uma destas flores e não sabia o nome!!
Bom blog este!!
Adorei ver. Assim, os portugueses
esquecem os DO PORTUGAL PROFUNDO.
OBRIGADO CONTINUEM
Atrevo-me a deixar o meu :
visaodaestrelarochosa
O poema PLÁTANO DO ROCHOSO talvez agrade a muitos e, principalmente,
aos ROCHOSENSES.
ATÉ SEMPRE
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