Linha das alfavacas
Um país onde tudo desaparece (a expressão é de Jorge de Sena) é terreno fértil para a indústria da nostalgia. Não que ela não se dê bem noutros países ou culturas. A nostalgia do tempo passado, que o envelhecimento vai exacerbando, é intrínseca à espécie humana. E há a nostalgia das épocas que não se viveram, com o glamour falseado que os filmes ou romances lhes foram colando. Existe, porém, um outro tipo de nostalgia em que Portugal claramente se destaca: a dos lugares que foram obliterados ou ficaram irreconhecíveis. Não é preciso ter vivido muitas décadas para compilar um volumoso álbum de recortes com praças, jardins, árvores, paisagens, ruas e edifícios que foram engolidos pela voragem da renovação cega ou sucumbiram ao abandono. Livros como Lisboa desaparecida, Porto desaparecido e Lugares da memória têm assunto à farta sobre que discorrer. Ainda a obra está no prelo e eis que uma demolição ou requalificação lhe desactualizam o conteúdo. Do mal o menos: a edição seguinte terá mais capítulos e mais fotos para recordar como era dantes.
E há também as linhas desaparecidas. Com a aposta nacional nas auto-estradas e na mobilidade individual, a nossa rede ferroviária vem sendo sistematicamente desmantelada desde a década de 1980. Para quem quiser hoje viajar pelo país, o comboio só é uma opção razoável no eixo Porto-Lisboa. Nalguns casos as linhas ainda funcionam, mas com horários inconvenientes e desarticulados; noutros, foram definitivamente encerradas; noutros ainda, foram-no provisoriamente, à espera de obras de Santa Engrácia. Mais uns anos, se se fizer nova edição do livro Pelas linhas da nostalgia [Edições Afrontamento, 2008; autores: Rui Cardoso e Mafalda César Machado], sobre vias férreas abandonadas, ela terá de abarcar quase todo o mapa ferroviário nacional anterior a 1980.
O propósito dos autores do livro é porem-nos a andar na linha — o que, se já lá não circula o comboio, é sem dúvida uma óptima ideia. Quase todos os passeios sugeridos são por linhas encerradas nos últimos trinta anos. Uma excepção é a linha em bitola estreita que ligava Porto de Mós às minas de carvão da Bezerra, na Serra dos Candeeiros: inaugurada em 1930, transportou passageiros até 1935; a partir daí, e até ao encerramento em 1948, serviu apenas para mercadorias. Os carris e o travejamento cedo foram retirados, mas o antigo canal ferroviário de 12 km, com piso de cascalho em metade da sua extensão, liga ainda as duas povoações.
Segundo o livro, o nome oficial da antiga via é Caminho-de-Ferro Mineiro do Lena. Chamamos-lhe linha das alfavacas não com intenção depreciativa, mas para homenagear uma planta (Astragalus lusitanicus) que por lá se encontra em quantidades invulgares, e que parece escassear no resto da Serra dos Candeeiros. Aliás, as muitas e variadas plantas que colonizaram o leito da antiga via ou as rochas que foram escavadas para lhe dar passagem tornam impraticável, aos botânicos amadores, fazer todo o percurso de uma só vez. Se a cada meia dúzia de metros há uma planta que nos acena para pararmos, como podemos completar os doze quilómetros?
Quanto à alfavaca, trata-se de uma leguminosa que, em Portugal, está presente em partes do nordeste e em todo o centro e sul; globalmente, ocorre ainda em Espanha, Grécia e norte de África. É um herbácea perene, de não mais que 70 cm de altura, com folhas pinadas compostas por 8 a 12 pares de folíolos. No litoral começa a florir logo em Fevereiro ou Janeiro, produzindo em seguida vagens inchadas, de 6 a 7 cm de comprimento. Não consta que tais feijões sejam comestíveis, mas a planta é redimida pelas suas evidentes qualidades ornamentais.
2 comentários :
Mais um dos múltiplos textos que nos enchem a alma. Obrigado pelo trabalho, ímpar!
E ficam
e ficam
nostalgias recordações lembranças também!
- e estes bocadinhos de lugares tão "imperfeitos", tão "humildes"
Ah...que uma serra não é uma serra é um mundo por descobrir!
Abçs
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