23/12/2013

A dança das orquídeas


Platanthera pollostantha R. M. Bateman & M. Moura / Erica azorica Hochst. (ilha de Santa Maria)

Na quarta-feira, dia 11 de Dezembro, deu-se na imprensa escrita portuguesa um fenómeno nunca visto: dois jornais (o Público e o Diário de Notícias) fizeram chamadas de primeira página com uma orquídea silvestre portuguesa. A notícia era a descoberta, por uma equipa de botânicos composta por dois britânicos (Richard Bateman e Paula Rudall, dos Kew Gardens) e uma portuguesa (Mónica Moura, da Universidade dos Açores), de uma nova espécie de orquídea nos Açores, a terceira do género Platanthera endémica do território. A nova orquídea, de que se encontraram apenas 250 exemplares em flor numa única ilha do arquipélago, a de São Jorge, foi de imediato alçada pelos seus descobridores à categoria da mais rara da sua família em toda a Europa. E foi essa distinção — que, muito mais do que um dúbio galardão, deve servir de alerta aos organismos regionais e nacionais de protecção da natureza — que fez convergir a atenção dos jornais. As fotos da raridade (uma haste singela armada com flores discretas, pequenas e verdes) terão provocado a perplexidade dos muitos leitores para quem as orquídeas são aquelas coisas vistosas e multicoloridas originárias dos trópicos. Haverá quem tenha aprendido alguma coisa lendo a notícia, mas outros, instalados no conforto de uma ignorância empedernida, quiseram partilhar connosco o seu vácuo mental, comentando assim a notícia no DN:

«Muita feia. Nem flor tem. A orquidea mais bonita é a Tailandesa.»

«Pois. Avancem já umas verbas prá protecção. Temos que deslocar uma equipa de vinte pessoas, mais o equipamento, o hotel e a alimentação para 6 meses (pelo menos). E, hã... as ajudas de custo, claro. Até fica barato, tendo em conta que vamos fazer mais quatro doutoramentos. Quanto à orquídea... [expressão de baixo calão].»

«Leiloa uma mudinha, algum colecionador vai querer pela raridade, apesar de na minha opinião não ser tão bonita assim. Com o dinheiro dá para investir na preservação da espécie.»

É bom esclarecer, antes que alguém se deixe empolgar por tão luminosa ideia, que as orquídeas europeias não têm qualquer interesse para coleccionadores. Passam 11 meses em cada ano reduzidas a tubérculos subterrâneos, só se deixando ver na época de floração; e, como dependem de micorrizas para a sua subsistência, são incapazes de sobreviver num jardim ou noutro meio artificial, morrendo rapidamente quando transplantadas. Colher estas orquídeas com intenção de as cultivar em vaso é uma idiotice e uma destruição pura e simples. O único modo de conservar a «orquídea mais rara da Europa» é (como sucede com todas as suas irmãs açorianas ou continentais) cuidar do habitat onde ela escolheu morar.

Ainda não dissemos que nome tem a nova Platanthera açoriana, e de facto até temos medo de pronunciá-lo. O feliz anúncio da descoberta de uma nova orquídea endémica, e para mais uma que se distingue claramente (sobretudo no tamanho e morfologia das flores) das suas duas conterrâneas, vem embrulhado numa revolução taxonómica capaz de provocar uma balbúrdia épica. Assim, a nova espécie fica a chamar-se Platanthera azorica; a espécie que antes tinha esse nome chama-se agora Platanthera micrantha; e aquela que se chamava Platanthera micrantha foi agora rebaptizada como Platanthera pollostantha (ilustrada nas fotos; o epíteto significa «a menor das flores»). Resumindo: há uma nova espécie e um novo nome, mas este não foi atribuído àquela; e nenhuma das espécies anteriormente conhecidas manteve o nome que tinha.

Ninguém propõe tal dança de nomes por gosto ou simples recreação. Richard Bateman et al. tiveram o maior cuidado em explicar, no artigo em que relatam a descoberta (Systematic revision of Platanthera in the Azorean archipelago: not one but three species, including arguably Europe’s rarest orchid, publicado on-line em 10 de Dezembro de 2013), que a responsabilidade do imbróglio cabe ao há muito falecido Moritz August Seubert (1818-1878), autor da primeira Flora Azorica (1844). Seubert, que nunca pôs os pés nos Açores, baseou as suas descrições no material de herbário recolhido pelos Hochstetter pai e filho, que percorreram o arquipélago em 1838. Essas descrições são, de um modo geral, pouco minuciosas ou mesmo vagas. Seubert descreveu e ilustrou duas Platantheras (embora tenha usado o nome genérico Habenaria), a P. micrantha e a P. azorica, que posteriores estudiosos da flora insular sempre acreditaram ser as duas espécies que, até ao passado dia 9 de Dezembro, ostentavam esses nomes, e que ocorrem na maioria das ilhas açorianas. Em Junho de 2011, em visita a São Jorge, Mónica Moura descobriu uma população de Platantheras bem diferentes daquelas que já conhecia. Richard Bateman, botânico especializado em orquídeas, confirmou tratar-se de uma nova espécie. A história só não ficou por aí porque os cientistas insistiram em ver os espécimes (ou holótipos) em que Seubert baseou as suas descrições. Ao receberem o material de herbário (enviado da Universidade de Tubinga, na Alemanha), Bateman et al. constataram serem três e não duas as espécies de Platanthera de que Karl Hochstetter (o filho) havia recolhido amostras; que a espécie encontrada por Mónica Moura em São Jorge (e que Hochstetter, não tendo visitado São Jorge, terá colhido em alguma outra ilha) tinha servido de base à descrição da P. azorica por Seubert, mas há 173 anos que não era vista; que a espécie que foi durante um século (erradamente) conhecida como P. azorica tinha afinal servido de base à descrição da P. micrantha; e que a espécie que foi durante um século (erradamente) conhecida como P. micrantha (de longe a mais comum no arquipélago) não tinha servido de base a qualquer descrição publicada por Seubert, e por isso, face ao código internacional de nomenclatura botânica (ICBN), não dispunha de nome válido.

Queixam-se os autores de que foram os ditames desse mesmo inflexível ICBN que os obrigaram, com «grande relutância», a uma revisão taxonómica que por certo se revelará fértil em trapalhadas e equívocos. E é de fraca ajuda que, em 2011, seguindo o exemplo de vários autores que nunca viram as plantas na natureza, a IUCN, ao actualizar a sua lista de espécies em perigo, tenha decidido que as duas Platantheras até então conhecidas no território formavam afinal uma única espécie, a que chamou P. micrantha, correspondente à actual P. pollostantha. Por ironia, das três espécies que agora sabemos existirem nos Açores, a P. pollostantha é a única cuja sobrevivência não suscita preocupações.

10 comentários :

ZG disse...

Muito interessante - mais um belíssimo post!
Gostei particularmente da seguinte frase do 1.º comentário: «A orquidea mais bonita é a Tailandesa.»!

Rafael Carvalho disse...

«Muita feia. Nem flor tem. A orquidea mais bonita é a Tailandesa.»
Polvilhada de ignorância,esta frase sintetiza a forma como uma parte significativa da população vê o nosso património, natural ou não. Tem utilidade imediata, explore-se. Não tem utilidade imediata, sachola em cima...
Bom Natal.

ZG disse...

O título do post está muito bom, e a ideia de se fazerem "mais quatro doutoramentos" sobre o assunto também tem bastante graça!

Paulo Araújo disse...

Obrigado pelos comentários, e Feliz Natal para todos.

ZG:
É extraordinário que esse comentador dos "quatro doutoramentos" pense - ou finja pensar - que em Portugal (e em particular nos Açores) se gastam fortunas na protecção da natureza. Sabendo eu o quanto a flora açoriana está ameaçada e desprotegida, bem gostaria que este comentário delirante tivesse algum átomo de verdade.

bea disse...

Vim só para desejar m bom Natal, consoada familiar, com saúde e aconchego.
Um abraço

Carlos M. Silva disse...

Paulo e Maria

Obrigado pelo que dão a conhecer, e mais uma vez de forma tão esclarecedora.
Abraço e que mais visões destas apareçam.

Boas festas para vós.
Carlos

Fernanda Delgado do Nascimento disse...

Excelente texto, gostei muito da forma como abordaram uma situacao que e recorrente e me preocupa tambem. A ignorancia de muitos nao me surpreende , mas choca-me a arrogancia de quem fala do que nao sabe nem se esforca para saber.
Feliz Natal e um bom Ano de 2014.

ZG disse...

Também desejo boas festas e bom ano 2014 ao Carlos, à Maria, ao Paulo e a todos os outros participantes deste belíssimo blog!

Rosa disse...

Os nossos endemismos deviam ser ensinados às crianças na escola primária, são tão importantes como a tabuada.

Lynx pardinus disse...

"Muita feia. Nem flor tem..."... fez-me lembrar o meu sogro para quem as árvores só tinham utilidade se fossem pinheiros, eucaliptos ou dessem frutos... tudo o resto era mato, logo para cortar, nunca se apercebendo como os "matos" são importantes! Bom mas o meu sogro era um homem nascido em plena "zona do pinhal" (na altura nem tanto pinhal devia ter assim...) no principio do séc. XX!!! Agora em pleno séc. XXI!!!
Boas festas e bom ano 2014.