22/08/2017

Águas entubadas



Bolboschoenus glaucus (Lam.) S. G. Sm.



Desde os humildes regatos aos grandes rios, os cursos de água assumem os mais variados tamanhos, mas todos eles porfiam por alcançar o mar. Alguns fazem-no directamente, outros entregam-se como afluentes aos que já romperam caminho para a costa. Com o crescimento das cidades, as ribeiras de pequeno caudal que as atravessavam foram sendo entubadas, por serem incompatíveis com o cimento e o asfalto ininterruptos sobre os quais nos habituámos a fazer a nossa vida. Uma vez escondidas dos nossos olhos, podiam ainda, ignominiosamente, ser convertidas em esgotos. Os lugares onde as águas, finalmente a descoberto, chegavam ao mar (ou a um rio que, pela sua dimensão, não pudesse ser ocultado) tornavam-se então focos de sujidade e de cheiros pestilentos. Porque a espécie humana sente uma repugnância paradoxal pela porcaria que ela própria produz, não é essa a vizinhança preferida de quem vai à praia para banhos de sol ou de mar. A solução era prolongar o entubamento pelo mar fora, fazendo com que a água choca saísse a umas centenas de metros da praia.

Felizmente muito mudou nas últimas décadas, e essa é uma conquista civilizacional que merece ser celebrada. Em Gaia e em Matosinhos, muitas ribeiras foram despoluídas e (parcialmente) desentubadas, desaguando agora no areal sem incómodo para os veraneantes e sem lhes pôr a saúde em risco. É até didáctico: às crianças que se entretêm a fazer castelos de areia podem agora os pais mostrar um rio em miniatura chegando à foz. Entre a flora dunar beneficiada por esta melhoria conta-se a Honckenya peploides, que vive em areias de beira-mar mas precisa de molhar as raízes em água doce. Em Matosinhos não é invulgar encontrá-la debruçada nestes ribeiritos que meandram preguiçosamente pelo areal. A sul do Douro ela rareia, e há dois ou três anos que não conseguimos detectá-la nos pontos do litoral gaiense onde costumava existir. Oxalá reapareça. Em compensação, na Aguda, onde um curso de água recém-libertado forma um pequeno charco na areia, surgiu uma população, concentrada mas numerosa, de uma das ciperáceas mais raras do país, o Bolboschoenus glaucus. Trata-se de uma planta com caules com cerca de 1 m de altura, de secção triangular, encimados por espiguetas dispostas em fascículos longamente pedunculados; no seu congénere B. maritimus, bastante mais comum em Portugal, todas ou quase todas as espiguetas são sésseis. As duas espécies vivem sempre com um pé na água, mas o Bolboschoenus glaucus é exclusivo de águas doces e o B. maritimus (que existe com abundância, por exemplo, na lagoa de Paramos) dá-se bem em águas salobras.

Se as plantas se conformassem com o que os estudiosos escrevem sobre elas, o Bolboschoenus glaucus nunca apareceria em Gaia, pois a Flora Iberica apenas reporta a sua ocorrência no centro e sul do país. Mas, para uma espécie cuja área de distribuição natural vai da Europa até à Índia, não custará muito transpor as curtas distâncias dentro deste nosso ocidental rectângulo.

1 comentário :

bea disse...

...e de como as plantas, mesmo sem pés, caminham.
Estive em visita na Aguda, vão mais de trinta anos; ficou-me a memória de chalés apalaçados e uma névoa densa e agreste. Não pus um pé na praia. Ainda hoje me impressiona o áspero veraneio de quem gosta de tal clima a cheirar a inverno e que me fez sofrer de frio. E no entanto, fui feliz na Aguda. Primariamente.