Águas entubadas
Bolboschoenus glaucus (Lam.) S. G. Sm.
Desde os humildes regatos aos grandes rios, os cursos de água assumem os mais variados tamanhos, mas todos eles porfiam por alcançar o mar. Alguns fazem-no directamente, outros entregam-se como afluentes aos que já romperam caminho para a costa. Com o crescimento das cidades, as ribeiras de pequeno caudal que as atravessavam foram sendo entubadas, por serem incompatíveis com o cimento e o asfalto ininterruptos sobre os quais nos habituámos a fazer a nossa vida. Uma vez escondidas dos nossos olhos, podiam ainda, ignominiosamente, ser convertidas em esgotos. Os lugares onde as águas, finalmente a descoberto, chegavam ao mar (ou a um rio que, pela sua dimensão, não pudesse ser ocultado) tornavam-se então focos de sujidade e de cheiros pestilentos. Porque a espécie humana sente uma repugnância paradoxal pela porcaria que ela própria produz, não é essa a vizinhança preferida de quem vai à praia para banhos de sol ou de mar. A solução era prolongar o entubamento pelo mar fora, fazendo com que a água choca saísse a umas centenas de metros da praia.
Felizmente muito mudou nas últimas décadas, e essa é uma conquista civilizacional que merece ser celebrada. Em Gaia e em Matosinhos, muitas ribeiras foram despoluídas e (parcialmente) desentubadas, desaguando agora no areal sem incómodo para os veraneantes e sem lhes pôr a saúde em risco. É até didáctico: às crianças que se entretêm a fazer castelos de areia podem agora os pais mostrar um rio em miniatura chegando à foz. Entre a flora dunar beneficiada por esta melhoria conta-se a Honckenya peploides, que vive em areias de beira-mar mas precisa de molhar as raízes em água doce. Em Matosinhos não é invulgar encontrá-la debruçada nestes ribeiritos que meandram preguiçosamente pelo areal. A sul do Douro ela rareia, e há dois ou três anos que não conseguimos detectá-la nos pontos do litoral gaiense onde costumava existir. Oxalá reapareça. Em compensação, na Aguda, onde um curso de água recém-libertado forma um pequeno charco na areia, surgiu uma população, concentrada mas numerosa, de uma das ciperáceas mais raras do país, o Bolboschoenus glaucus. Trata-se de uma planta com caules com cerca de 1 m de altura, de secção triangular, encimados por espiguetas dispostas em fascículos longamente pedunculados; no seu congénere B. maritimus, bastante mais comum em Portugal, todas ou quase todas as espiguetas são sésseis. As duas espécies vivem sempre com um pé na água, mas o Bolboschoenus glaucus é exclusivo de águas doces e o B. maritimus (que existe com abundância, por exemplo, na lagoa de Paramos) dá-se bem em águas salobras.
Se as plantas se conformassem com o que os estudiosos escrevem sobre elas, o Bolboschoenus glaucus nunca apareceria em Gaia, pois a Flora Iberica apenas reporta a sua ocorrência no centro e sul do país. Mas, para uma espécie cuja área de distribuição natural vai da Europa até à Índia, não custará muito transpor as curtas distâncias dentro deste nosso ocidental rectângulo.
1 comentário :
...e de como as plantas, mesmo sem pés, caminham.
Estive em visita na Aguda, vão mais de trinta anos; ficou-me a memória de chalés apalaçados e uma névoa densa e agreste. Não pus um pé na praia. Ainda hoje me impressiona o áspero veraneio de quem gosta de tal clima a cheirar a inverno e que me fez sofrer de frio. E no entanto, fui feliz na Aguda. Primariamente.
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