16/03/2006

Rotundas no deserto

Viajar no país não apresenta dificuldades de maior: localizamos os pontos desejados num mapa de estradas actualizado (para isso, e dado o ritmo das inaugurações, ele não deverá ter sido editado há mais de três meses), e procuramos ligá-los por uma sucessão de linhas a traço grosso. Numa primeira fase só nos interessam as linhas marcadas com A; se elas não nos permitirem alcançar o destino, usamos os IPs e os ICs; e, se estes ainda não forem suficientes, resignamo-nos, para a etapa final, com as EN's, que de tão finas quase não se vêem no mapa.

Viajar não será o verbo apropriado para descrever este frenesim de nos deslocarmos entre dois pontos no menor intervalo de tempo possível, ignorando tudo quanto se encontre no caminho: planar é termo mais justo. Há um país uniforme de auto-estradas, feito de largas pistas de asfalto, estações de serviço, portagens, nós de acesso, que se sobrepõe, obliterando-o, a um país diferenciado de terras, paisagens e gentes. Por isso é educativo, seja por necessidade ou por opção, abandonar o suave tapete da auto-estrada para rodar durante uns quilómetros por uma EN.

Talvez o país assim redescoberto não seja bonito, mas é real, é nosso, e é bom que saibamos como ele é. No passado sábado, uma ida a Penalva do Castelo, com regresso por Mangualde, Nelas e Viseu, deu-nos a ver uma paisagem escalavrada pela eucaliptização e pelos incêndios, que nenhuma Primavera poderá redimir, e de que o solo exaurido e imprestável prenuncia o avanço do deserto.

A beleza que ainda subsiste neste pedaço da Beira Interior encontra-se nas quintas privadas (como a da Ínsua ) ou em povoações como a de Santar, no concelho de Nelas. E, na sede do concelho, olhamos com admiração respeitosa para a profusão e variedade de rotundas que pontuam o espaço público. Vê-se que há aqui uma escola de rotundas, uma exigência que não transige com a repetição e faz de cada rotunda, apesar da sua inescapável rotundez, uma composição única, decorada ora com arremedos de jardim, ora com esculturas diversas, ora com uma combinação das duas coisas. Não diremos taxativamente que haja beleza na rotunda em si - mas, se nela crescer uma árvore, há pelo menos a beleza dessa árvore, o que sempre é um alívio depois de tantos quilómetros de terra queimada.

1 comentário :

Anónimo disse...

Lembrei-me da crónica do Bernardino no JN a 21-01-05
S. João da Madeira ainda bate Nelas ... nas rotundas.
Aqui fica um excerto para nao terem que procurar muito ;-)

«Mas o padrão, o arquétipo de tudo isto é, sem dúvida, a rotunda. Não seria possível, talvez, entender a contemporaneidade sem essa muleta urbanística omnipresente. Os autarcas amam e difundem as rotundas com volúpia, como se não houvesse amanhã. Nada se vulgarizou mais do que este elogio ao redondo, ao circular, do que esta herdeira distante da invenção da roda, quiçá com laivos esotéricos impulsionando, através da circunferência, um simbolismo novo e só de alguns conhecido.

Ninguém duvida da real influência do esférico na nossa vida pública, mas , em vez de deslizar sobre a relva, este tipo de "melhoramentos" declara guerra sem quartel ao discurso quadrado, dos que não vislumbram beleza no trânsito zombando de cruzamentos e bifurcações, encantado a rodar, qual girândola, circunvagando em torno de fontes cibernéticas já tontas de tanta mobilidade.

Longe de mim querer ser redundante, mas li recentemente que no município de S. João da Madeira se procura moderar este entusiasmo. Eliminar 11 rotundas, eis o objectivo camarário. Parece muito? Não é. Esse simpático concelho possui 110 destes círculos rodoviários, em oito quilómetros quadrados!!

Certo é que, entre rotundas (esta crónica é redonda, como os leitores já perceberam) IP's e IC's com e sem lógica, a mancha construtiva alarga-se território afora, misturando urbano e rural - mas ao contrário do que, digo eu, poderia ser, criando vastas "zonas de ninguém"» Bernardino Guimarães
A ruína na paisagem Via Vistas na Paisagem