20/06/2024

Alfinetes dos picos

Centranthus nevadensis Boiss.


O nosso cérebro está cheio de curtos-circuitos, fazendo com que memórias distantes e díspares interajam inesperadamente. A memória mais recente é do Verão passado, na serra Nevada, a 2500 metros de altitude. Apoiando-me numa rocha, após uma descida abrupta em que teria sido fácil resvalar para o precipício, fotografava, tentando controlar a tremura das mãos, as inalcançáveis plantas de flores vermelhas que pontuavam o paredão rochoso uns vinte metros à minha frente. Ampliadas as imagens, fiquei a saber que se tratava do Centranthus nevadensis, uma planta rara, restrita à Península Ibérica e a Marrocos, que em Espanha surge só nas quatro províncias mais meridionais: Almeria, Granada, Málaga e Cádiz. Era, afinal, prima direita dos vulgares alfinetes (Centranthus ruber) que enfeitam de beleza desbragada os muros velhos das nossas cidades. Os alfinetes-de-Nevada não lhes são equiparáveis em formosura, e a raridade é o artifício que usam para se fazerem interessantes. E é aí que a segunda memória, essa com vinte anos, contamina a primeira: a lembrança de, no jardim mais acolhedor da minha cidade, ter fotografado alfinetes multicoloridos (vermelhos, rosados, brancos) num muro com vista para o Douro. Num passeio sossegado, urbano e sem riscos, sem viagem longa antes ou depois, foi possível (ainda é possível) encontrar atraentes amostras de natureza. Viajar é preciso, mas é falso que certas vivências só nos aconteçam em paragens longínquas. Para não definharmos, precisamos de exercitar no quotidiano a nossa capacidade de observação do mundo natural. Quando, longe de casa, nos deparamos com o que é novo, é o contraste com aquilo que nos é familiar que enriquece a experiência.

Centranthus nevadensis Boiss.


Torna-se assim obrigatório explicar em que difere o remoto Centranthus nevadensis do doméstico Centranthus ruber. O que os une é evidente: os cachos de flores vermelhas ou rosadas, cada uma dotada de tubo alongado, cinco pétalas assimétricas, um só estame e um só estigma, ambos marcadamente salientes. Contudo, o Centranthus ruber é, por larga margem, o mais florífero dos dois, o que lhe permitiu viajar pelo mundo inteiro à conta do seu mérito ornamental. Também nas folhas os dois primos divergem: as do C. ruber são largas, lanceoladas e acuminadas, enquanto que as do C. nevadensis são pequenas, lineares e de ápice rombudo. Finalmente, o C. nevadensis tem base lenhosa e, amiúde, caules rastejantes ou mesmo pendentes; por contraste, o C. ruber é inteiramente herbáceo e apresenta caules quase sempre erectos.

Nestas duas espécies de Centranthus há um detalhe que só de perto se aprecia: os tubos florais são prolongados na base por um comprido esporão (veja-se a 5.ª foto aí em cima) — que contém, como é usual, o néctar com que a planta atrai e recompensa os polinizadores. Tal morfologia impõe que esses insectos sejam minúsculos (para caberem no tubo) ou disponham de trombas desproporcionalmente compridas. A segunda hipótese é que é válida, pois é sabido que estas plantas são polinizadas por borboletas.

Do que as fotos também dão testemunho é que afinal o fotógrafo conseguiu chegar junto das plantas. Terá perdido o amor à vida, ignorando o perigo do precipício? Nada disso. Sucedeu apenas que, uns dias depois, ainda na serra Nevada, eu e a Maria reencontrámos o C. nevadensis na berma escarpada de uma estrada, e aí a única ameaça à integridade física vinha do trânsito moderamente intenso.

Centranthus ruber (L.) DC.
(jardim da Casa Tait, no Porto)

13/06/2024

Assobios de Miranda



Havendo um período de floração declarado oficialmente nas Floras, o mínimo que se espera é que as plantas o cumpram escrupulosamente para que polinizadores, amadores e fotógrafos não sejam defraudados nas suas justas expectativas de obter nessas datas mel, contentamento e imagens (respectivamente, claro). Mas há espécies que são esquivas como lebres, seres estranhos numa era em que poucos dispensam várias fotos por hora a ilustrar as trivialidades do dia-a-dia. Mostramo-vos hoje uma dessas espécies, que nos obrigou a fazer, durante cinco anos, entre Abril e Maio, cinco viagens a Miranda do Douro. No início de Maio de um ano já só havia cápsulas secas com as sementes; a meio de Abril do ano seguinte ainda nem se notavam as hastes das flores. Só no fim de Abril de 2024 lográmos ver-lhe as flores.

Silene conica L.


Esta herbácea é anual e mede cerca de 15 cm de altura. As flores são diminutas (o cálice da flor não mede mais de 2 cm) e nota-se uma lanugem fina e macia nos talos e folhas. A formosura está quase toda nas cápsulas cónicas, que lembram cebolinhas estriadas, ou balões que apetece apertar para ver se soltam um assobio. Vimo-la sobre as muralhas de Miranda do Douro (ouvindo os pauliteiros a ensaiar ali perto), um local com saibro de fraca estabilidade e demasiado pisoteado; e em prados próximos às muralhas, com solo arenoso, cuja vegetação corre anualmente o risco de ser cortada à escovinha para não parecer que a autarquia é desmazelada a cuidar dos monumentos do concelho.

Os dados de ocorrência desta Silene em Portugal indicam que é rara por cá (são conhecidos apenas quatro núcleos com poucos indivíduos junto à fronteira leste com Espanha) e que está a perder habitat favorável. Por este andar, não tardará a desaparecer no nosso território. É certo que a sua distribuição é vasta (além da Península Ibérica, existe no centro e sul da Europa, em parte da Ásia e no norte de África), mas seria embaraçoso para cientistas, autarcas e instituições que financiam a investigação neste país que se extinguisse alguma espécie em Portugal neste século — sobretudo uma como esta, com risco de extinção solenemente anunciado na Lista Vermelha da Flora. Ninguém poderá alegar que não foi avisado.