Lotus x 2
Entre as erupções que lhes deram origem e o mar que metodicamente as vai desgastando, o destino das ilhas (medido numa escala de milhões de anos) é virem do nada para ao nada regressarem. A ilha do Porto Santo, mais velha do que a Madeira e muito mais do que todas as ilhas dos Açores, já foi bem maior do que é hoje, mas a erosão prossegue e o mar só terá descanso quando não sobrar uma pedra à superfície. Não será porém durante as nossas vidas, e o mais certo é que então a humanidade já não exista.
A velhice tem prerrogativas que ninguém pode negar, como a de ter feito tudo ou quase tudo antes dos jovens que hoje mandam no mundo. Falando de ilhas e das plantas que nelas vivem, se uma espécie é comum a duas ilhas vizinhas, então a suposição natural (nem sempre confirmada na prática) é que ela tenha tido o seu berço na mais idosa das duas. Ou seja, a ilha mais velha terá criado a planta para a deixar de herança à mais nova. A dificuldade é que as espécies vegetais das ilhas não surgem por geração espontânea, mas têm origem em estirpes vindas dos continentes. Se a distância da Madeira e do Porto Santo às massas continentais africana e europeia é praticamente a mesma (o Porto Santo está ligeiramente mais próximo), a Madeira, sendo muitas vezes maior do que o Porto Santo, teve maiores probabilidades de captar as sementes colonizadoras trazidas pelos pássaros, pelos ventos ou pelas marés. Assim, e até que a ciência tire o assunto a limpo, não há modo de decidir em qual das ilhas se originaram as espécies endémicas partilhadas entre a Madeira e o Porto Santo.
Duas dessas espécies, ambas do género Lotus, figuram hoje no cartaz. É um género em que o Porto Santo leva vantagem, uma vez que detém em exclusivo a terceira espécie endémica do arquipélago, L. loweanus. Além disso, tanto o L. macranthus como o L. argyrodes, adaptados a climas áridos e a solos rochosos, são bem mais frequentes e fáceis de encontrar no Porto Santo do que na Madeira. Não seria surpresa se se concluísse serem eles originários da menor das duas ilhas.
Que diferenças há a assinalar entre estes dois Lotus, fotografados não muito longe um do outro na subida para o Pico Branco? O L. macranthus (em cima), apesar do epíteto que significa "flor grande", não se distingue pelo maior tamanho das flores, mas antes pela cor verde que contrasta com o tom acetinado que a penugem mais densa empresta ao L. argyrodes. Além disso, o L. macranthus tem folíolos menores e algo carnudos, e a indumentação do cálice é feita de pêlos curtos, aplicados, enquanto que os do L. macranthus são compridos e patentes (compare a quarta foto em cima com as duas últimas em baixo). A diferente coloração das flores, observável nas fotos, não é um indicador fiável, já que tanto o L. macranthus como o L. argyrodes podem dar flores claras ou escuras.
Ambas estas espécies foram uma vez ou outra assinaladas, com alto grau de incerteza, no arquipélago dos Açores, até que em 1968 P. W. Ball entendeu que as plantas açorianas eram diferentes das madeirenses e endémicas dos Açores; chamou-lhes Lotus azoricus. O assunto parecia encerrado, mas em 2006, num artigo intitulado A taxonomic survey of Lotus section Pedrosia (Leguminosae, Loteae), um grupo de botânicos a trabalhar nas universidades de Moscovo e de Perth concluiu não haver diferenças mensuráveis entre o L. argyrodes e o L. azoricus, tratando-se portanto de uma única espécie. A ser aceite tal opinião, os Açores e a Madeira partilhariam mais um endemismo, quando nos últimos anos a regra tem sido separar, em duas ou mais espécies, taxónes que antes se supunha existirem em ambos os arquipélagos. De facto, as fotos que tirámos de ambas as espécie parecem corroborar a sinonímia, havendo porém ligeiras diferenças no indumento do cálice e na forma dos folíolos. Parece-nos também, pelo que observámos no Pico e em Santa Maria, que as plantas açorianas formam tapetes muito mais extensos do que as madeirenses. Só um estudo genético, que já tarda, permitirá tirar conclusões seguras.