21/11/2024

Morte na neve



Não costumamos pensar na morte quando comemos; mas aquilo que levamos à boca, se fosse dotado de consciência, não pensaria noutra coisa. Mesmo um carnívoro militante, quando tem no prato um pedaço de carne com o mesmo cheiro do animal vivo (coisa que é frequente com borrego ou cabrito), pode sentir que lhe fraqueja o apetite. Em todo o caso, a nossa espécie registou grandes avanços em dissociar a morte da alimentação. Os frangos e os bifes envoltos em celofane não têm nas embalagens qualquer alusão à existência de matadouros ou ao modo como esses animais foram mortos e retalhados. Nos programas televisivos de vida selvagem, as refeições dos grandes predadores fascinam-nos e arrepiam-nos pela violência e pelo sangue — em suma, pelo carácter animalesco que está totalmente ausente dos nossos civilizados repastos.

As plantas carnívoras não nos causam arrepios, talvez por sermos incapazes de nos imaginar no lugar dos insectos de que se alimentam, mas justifica-se mais o fascínio por elas do que por leões ou outros bichos sanguinários. Cumpre às plantas levarem existências vegetativas: não têm vontade, muito menos consciência. Como pode uma planta adoptar um comportamento tipicamente animal, matando para comer? Claro que, sendo planta, está limitada nos seus movimentos, de modo que esse acto de comer não envolve mastigação vigorosa. O que uma planta insectívora do género Pinguicula faz, depois de aprisionar os insectos na mucilagem que envolve as folhas, é segregar uma substância viscosa que contém enzimas digestivas; e, depois de completada a digestão na superfície da folha, absorver o líquido nutritivo daí resultante.

Pinguicula nevadensis (H. Lindb.) Casper


Para não repetirmos lições anteriores, pode o leitor reler o que antes escrevemos sobre as duas espécies de Pinguicula presentes em Portugal — P. lusitanica e P. vulgaris — e ainda sobre a P. grandiflora, que avistámos na Cantábria. A Pinguicula nevadensis, que ilustra o texto de hoje, segue o mesmo figurino das espécies antes apresentadas, e de facto é muito semelhante à P. vulgaris, distinguindo-se dela pelas folhas quase tão largas quanto compridas, e pela forma e coloração mais pálida das flores. Contudo, enquanto que a P. vulgaris tem uma distribuição circum-boreal (América do Norte, Europa e Ásia) ou até um pouco mais vasta (está também presente na cordilheira do Atlas, em Marrocos), a P. nevadensis está confinada a uns poucos quilómetros quadrados na metade oeste da serra Nevada, na província de Granada, onde aparece em prados húmidos e margens de riachos acima dos 2000 metros de altitude.

A P. nevadensis mostra bem que ter uma área de distribuição restrita não implica raridade, pois a planta é abundante e fácil de encontrar, nos cumes da serra Nevada, no habitat que lhe é próprio. A sua floração é estival, decorrendo entre Julho e Agosto. É nessa altura que os prados se enchem de insectos, e ela não se faz rogada em aproveitar tão generoso maná.

08/11/2024

Enleios do sul

De há uns dois anos para cá, tornou-se hábito os jardins do Porto estarem vedados ao público. Seja porque as obras do Metro ocupam esses espaços, destruindo-os total ou parcialmente, seja porque a Câmara decide lançar obras de «requalificação», o resultado é que, durante meses a fio, quase todos os jardins da cidade têm estado inacessíveis a quem busca uma sombra ou um lugar para descanso. O jardim de Sophia foi convertido numa imensa cratera e perdeu todas as árvores — não tem salvação possível. Do jardim do Carregal, que à partida já era diminuto, só resta metade, e essa metade permanece interdita aos transeuntes. Os jardins da Cordoaria e da praça da República estão fechados para «requalificação» por um período que se adivinha prolongado. Também o jardim da Arca d'Água esteve fechado uns meses pelo mesmo motivo, mas entretanto já reabriu; a intervenção a que foi sujeito, puramente cosmética, centrou-se na impermeabilização dos caminhos e na renovação de bancos e candeeiros, abdicando de mexer no coberto vegetal. Para completar a lista, também o jardim da rotunda da Boavista foi parcialmente sequestrado pela Metro do Porto. Amputada de três ou quatro grandes árvores, a parte afectada acabou por reabrir, mas os responsáveis pelas obras já fizeram saber que querem lá voltar em breve. De facto, o grau de destruição alcançado nessa primeira etapa está longe de fazer jus aos pergaminhos da empresa.

Que, numa cidade em que os jardins são escassos, os diferentes responsáveis se conjuguem para tolher, praticamente em simultâneo, o usufruto público de quase todos eles é prova irrefutável do escasso apreço pela verdura nas urbes portuguesas. Sentarmo-nos num banco de jardim é uma actividade improdutiva, uma perda de tempo sem qualquer benefício económico para a sociedade, um exemplo acabado de imobilidade insustentável. Quem, na cidade, quiser sentar-se ao ar livre deve escolher uma esplanada e pagar o que for devido.

Além de desvalorizados como lugares de repouso ou relaxamento, os jardins públicos portuenses (ou, mais geralmente, portugueses) são pobres no colorido das flores e na variedade das plantas que acolhem. Valem apenas pelas árvores, e neles nunca se vêem as plantas sazonais (narcisos, açafrões, lírios, cilas, alhos-silvestres, etc.) que dão cor aos nossos montes. Num país sem jardinagem pública, ficam os jardins condenados ao verde inexpressivo dos relvados. Não é nesses bisonhos «espaços verdes», de que foi banida toda a diversidade vegetal, que aprendemos a contemplar e a reconhecer as plantas. Até aquelas que alcançaram grande popularidade no mundo da jardinagem, e que se encontram em jardins medianamente cuidados de qualquer cidade europeia (não portuguesa), acabam por se nos tornar desconhecidas. Exemplo disso são as trepadeiras do género Clematis (em português, clemátis ou clematites). Quando foi a última vez que as vimos num jardim público no nosso país?

Clematis flammula L.


São às centenas as espécies e variedades de clemátis domesticadas para jardinagem e que estamos privados de admirar. Contudo, se passearmos nos espaços naturais do país, encontramos várias espécies de clemátis espontâneas e, havendo sorte, até topamos com elas em flor. Das quatro que são nativas em Portugal, duas delas, Clematis vitalba e Clematis campaniflora, aparecem sobretudo no norte e no centro; as outras duas, Clematis cirrhosa e Clematis flammula (ilustrada nas fotos), estão praticamente restritas ao Algarve. A C. cirrhosa floresce no Inverno, enquanto que as restantes o fazem desde o final da Primavera até meados do Verão.

Tal como as suas congéneres, a Clematis flammula é uma trepadeira vigorosa, enleando-se nas árvores e arbustos que compõem os matos mediterrânicos onde tem o seu habitat de eleição. As folhas são compostas, duas a três vezes pinatissectas, e as flores brancas têm cerca de 3 cm de diâmetro. A sua distribuição é circum-mediterrânica, abrangendo todo o sul da Europa e norte de África. Em Portugal, além de ser espontânea no Algarve, está naturalizada em algumas ilhas dos Açores. Já a vimos no Algarve, mas numa época em que a floração ainda tardaria meses. As fotos que acompanham o texto foram tiradas na vertente sul da serra Nevada, onde, no início de Julho, a abundante produção de flores torna a planta muito visível nas bermas das estradas.