01/12/2005

Chuva Oblíqua

I
Atravessa esta paisagem o meu sonho de um porto infinito
E a cor dar flores é transparente de as velas de grandes navios
Que largam do cais arrastando nas águas por sombra
Os vultos ao sol daquelas árvores antigas...

E o porto que sonho é sombrio e pálido
E esta paisagem é cheia de sol deste lado...
Mas no meu espírito o sol deste dia é porto sombrio
E os navios que saem do porto são estas árvores ao sol...

Liberto em duplo, abandonei-me da paisagem abaixo...
O vulto do cais é a estrada nítida e calma
Que se levanta e se ergue como um muro,
E os navios passam por dentro dos troncos das árvores
Com uma horizontalidade vertical,
E deixam cair amarras na água pelas folhas uma a uma dentro....

Não sei quem me sonho...
Súbito toda a água do mar é transparente
E vejo no fundo, como uma estampa enorme que lá estivesse desdobrada,
Esta paisagem toda, renque de árvore, estrada a arder em aquele porto,
E a sombra duma nau mais antiga que o porto que passa
Entre o meu sonho do porto e o meu ver esta paisagem
E chega ao pé de mim, e entra por mim dentro,
E passa para o outro lado da minha alma...
(...)
Fernando Pessoa

Nos 70 anos da sua morte e numa altura em que a sua obra volta a cair no domínio público

2 comentários :

luis manuel disse...

Tal como as flores ou as árvores, que vão "semeando" por esta página, dando-lhe perfume, colorido e sobretudo tanto saber, foi a propósito o espaço dedicado á figura de Fernando Pessoa.

(desde que descobri referências ao Jardim Botânico, que vos tenho visitado.)

até breve

António Viriato disse...

Vejo que não lhes escapou a efeméride. Ainda bem, porque a grandeza e a fecundidade deste puro espírito não se extinguirá tão cedo. Modestamente, mais uma vez, este ano, na minha pessoal tribuna, a ele também voltei. E todas as homenagens não serão de mais, sobretudo, para compensar as que em devido tempo, em vida, lhe negaram. Bem hajam, pelo gesto, pelo poema evocativo e por tudo o que fizerem pela memória de Fernando Pessoa.