17/06/2005

Hampstead Heath



Domingo de manhã em Londres: céu opaco, temperatura amena. É na Charing Cross Road, mesmo à frente da Foyles, que apanho o autocarro 24 para Hampstead Heath. Como é próprio do turista que sou, subo ao primeiro andar e fico a varrer o panorama citadino com olhos que nem faróis. Depois da rua das livrarias, um Freddie Mercury à escala natural em equilíbrio na fachada de um teatro, pavoroso de tão dourado, dá-nos as boas-vindas em Tottenham Court Road, a feia rua dos electrodomésticos, redimida por ocasionais vislumbres das sossegadas praças de Bloomsbury.

Continuando para norte, ladeamos a estação ferroviária de Euston. Tantas vezes por aqui passei que me assalta uma nostalgia ridícula: será que a WH Smith ainda lá mantém a mega-loja - igual às milhares de outras sucursais espalhadas pelo país - de livros, revistas e chocolates? Não me apeio para averiguar, e o autocarro já avança, bamboleante, em direcção a Camden Town. O mercado hippie-tardio lá se mantém florescente, agora aberto todos os dias; mas, entre as montras de genuína quinquilharia alternativa, algumas lojas de marca causam uma impressão dissonante.

O autocarro desvia-se da rua principal e, depois de atravessar uma zona residencial fartamente arborizada, chega ao termo do seu percurso nas franjas de Hampstead, bonito bairro de gente abastada com ruas íngremes e serpenteantes. A visita ao bairro ficará para outro regresso, pois hoje é a Hampstead Heath que me dirijo.

Com os seus 320 hectares (quatro vezes a área do nosso Parque da Cidade), Hampstead Heath não é, ainda assim, o maior parque urbano de Londres: os parques de Richmond e Hampton Court excedem-no largamente. Mas é mais do que suficiente para que quem nele se embrenhe ouça o silêncio apenas quebrado pelo canto dos pássaros. Tirando o parque infantil e uns campos de ténis no seu limite sul, Hampstead Heath não tem equipamentos: nem estádios, nem cafetarias, nem pavilhões temáticos, nem centros interpretativos, nem circuitos de manutenção. São só 320 hectares de prados, caminhos, árvores, bosques densos, lagos. Em 130 anos, desde que o parque foi criado, ninguém quis valorizá-lo com construções espúrias ou rasgá-lo com rodovias. É verdadeiramente singular, a olhos portugueses, que um parque tão despojado de atractivos postiços tenha tanta procura mesmo com tempo agreste. Desta vez não subo à Parliament Hill, um dos melhores miradouros de Londres, mas sei que, como em todos os domingos, a colina está engalanada de esvoaçantes papagaios de papel.

Entro em Hampstead Heath e sigo para norte, em direcção à Kenwood House, casa palaciana ao gosto italiano cujos terrenos, incluindo um jardim formal e um antigo e valioso bosque de carvalhos e faias, foram anexados ao parque na década de 1920. Sempre que faço este passeio acabo por tomar um caminho diferente - o que é outro modo de dizer que sempre me perco. É por isso improvável que alguma vez reencontre estas árvores formidáveis com que deparo a cada curva do meu irrepetível caminho.



Mas, chegado à meta depois de uma hora de caminhada, renovo a amizade com uma velha conhecida: é uma simples magnólia de folha caduca, de tronco curto retorcido pela idade, moradora no terço superior do relvado que desce da fachada principal da casa até ao lago. Dezasseis anos depois do nosso primeiro encontro, ainda está no seu lugar exacto. Enquanto puder, voltarei com a certeza de a reencontrar. A placa que a protege diz isto: THIS IMPORTANT MAGNOLIA TREE CAN BE DAMAGED BY SWINGING ON IT. PLEASE KEEP OFF.



(Por cá, para não ter desgostos, é melhor cultivar a indiferença e o esquecimento. De que me vale gostar das magnólias junto à Igreja dos Congregados, agora que o dream team as condenou à morte?)

Fotos: pva 0506 - Hampstead Heath, Londres

6 comentários :

LFV disse...

Ao menos nada há que danifique as magnólias em Portugal, nomeadamente no Porto. Podem ser amputadas, empurradas, arrancadas pela raiz. Desde que seja com arte. Por arquitectos. Chamados de "dream team". Como se fossem basquetebolistas de mais de 2 metros, da NBA. Tão grande país merece outro Sebastião José...

José Santos disse...

Mais um post delicioso para me matar as saudades!
Apesar de já ter estado em Londres diversas vezes, não conheço esse parque. Obrigado por mo apresentarem.

Quanto aos jardineiros portugueses, há muito que se lhe diga. Por exemplo aqui em Benfica, os jardineiros camarários plantam e replantam àrvores e ainda não descobriram que elas morrem porque depois de plantadas, ninguém se lembra de as regar.
Existe aqui uma rotunda que já levou uns 15 sobreiros e - milagrosamente - ainda lá estão três vivos.
Agora mudaram de espécie de árvore. Concerteza porque os sobreiros não se davam naquele local sem àgua.

Anónimo disse...

O Porto está morto? Pelos comentários no manifesto/abaixo-assinado assim parece...
Consta cá pelo Sul que a razao para a deslocação da estátua do D.Pedro no projecto SIZENTO é para deixarem espaço para a construção de um monumento aos projectistas. É verdade? (Nao sei porquè nao os estou a ver a cavalo; imagino-os antes em versão anos 70:de moto e side car... )
Alfacinha

Maria Carvalho disse...

Esta casa e esta magnólia contracenaram com a Julia Roberts e o Hugh Grant no filme Notting Hill. Lembram-se?

http://www.english-heritage.org.uk/server/show/conMediaFile.3160

ManuelaDLRamos disse...

Caríssima Borboleta. Muito obrigada muito obrigada ;-) mas nao fui eu que escrevi este relato e tenho bem pena, por duas razões: primeiro porque isso significaria que tinha ido a Hampstead (e bem me apetecia pois até cheguei a trabalhar na zona, num Restaurante vegetariano chamado Pippin's nos idos anos 80 ;-) e segundo, porque por mais que me esforçasse nunca conseguiria escrever como o Paulo...

Anónimo disse...

Paulo, aproveite bem o tempo para passear (se é que foi aí só para isso) e tirar boas fotos dos parques e jardins. Será forçado a adquirir pelo menos mais um cartão de memória para tanta coisa, pois aí sabem como decorar os exteriores. Abraço. Octávio Lima (ondas2.blogs.sapo.pt)