20/03/2012

O que é um pseudonarciso?

Narcissus pseudonarcissus subsp. nobilis (Haw.) A. Fern.


– Podemos entrar no seu lameiro para ver aquelas flores?
– Para ver o quê? As ovelhas?...
– Não, não, as flores.
– Não é meu, façam favor.

A Península Ibérica é abonada em narcisos, sobretudo as regiões mais frias ou de montanha. As maiores populações conhecidas no país de Narcissus pseudonarcissus, espécie do sudoeste da Europa, estão precisamente na serra da Estrela e na serra Amarela, aqui em zona de reserva integral. Mas ele também surge em altitudes baixas, no Minho, embora esteja dependente de uma gestão tradicional dos lameiros que está em risco de se perder.

O abandono da agricultura, substituída pela secção de verduras dos supermercados, poderia beneficiá-lo por poupar o solo e os bolbos, mas na verdade as terras em pousio tendem a encher-se de ervas que competem com excessiva valentia. Contudo, a tendência para, em vez de legumes, plantar forragem para o gado, que ali se alimenta em regime de self-service, trouxe novas esperanças aos narcisos. Nos poucos locais onde ainda há populações deste narciso, prados e regatos de água fresca, houve a oportuna iniciativa de negociar com os proprietários um acordo que incentiva o pastoreio, para que o gado segue estes campos com firmeza (deixando os narcisos intactos por lhe serem indigestos), e os impede de mobilizar agressivamente o solo e de utilizar herbicidas ou pesticidas. O resultado desta gestão minuciosa são as centenas ou milhares de tufos de folhas lineares, de secção trapezoidal, azuladas e erectas, encimados por elegantes trombetas amarelas com bordo crenulado, base protegida por uma bráctea, a recender a mel e aformoseadas por um colar de seis tépalas ligeiramente retorcidas. Lembram as do N. asturiensis, mas em versão de maior porte e com flores mais avantajadas.

Vimo-los primeiro em Póvoa de Lanhoso, tendo para isso de usar galochas nos pastos regados por fartos ribeirinhos e saltar algumas cercas com que a propriedade privada, legitimamente incomodada com a curiosidade alheia, se protege, e previne a colheita ilegal de bolbos. Num ano mais chuvoso formariam mantos extensos de flores (com as tépalas brancas, que algumas Floras designam N. pseudonarcissus subsp. nobilis), o que indicia que a preservação do habitat está a ser bem sucedida. Seguindo uma indicação do Carlos Silva, a quem agradecemos, fomos depois à serra d'Arga, um sistema montanhoso relativamente baixo (não sobe além dos 900 metros) e invulgarmente perto do mar. A vegetação é rala e o lugar rochoso e granítico, mas deve chover ali bastante porque nos planaltos predominam as turfeiras. Por ali, são os cavalos selvagens que fazem a manutenção das margens dos ribeiros, criando um refúgio propício à disseminação das plantas mais frágeis. Encontrámos Drosera rotundifolia, Pinguicula lusitanica, Anemone trifolia, Viola palustris, N. bulbocodium, Scilla monophyllos. E muitos exemplares deste narciso, mas desta vez com as flores completamente amarelas (que as mesmas Floras denominam N. pseudonarcissus subsp. portensis) e um perfume igualmente doce (embora não saibamos quantificar esta afirmação).

Narcissus pseudonarcissus subsp. nobilis (Haw.) A. Fern. / Narcissus pseudonarcissus subsp. portensis (Pugsley) A. Fern.
A rotina que nos impacienta no Inverno, à espera de que as plantas acordem, não nos permitiu sossegar enquanto não fomos ver aquela que pode ser a terceira maior população deste narciso. Está em Paredes de Coura, mas não no lugar onde ocorre o N. cyclamineus. Preferiu instalar-se mais acima, num recanto frio entre currais e pastos de feno húmidos, cruzados por um riacho de caudal escasso. Numa das populações, em exemplares que distavam não mais de dez centímetros entre si, encontrámos plantas com flores de tépalas brancas, outras com tépalas divididas entre branco e amarelo (este tom mais próximo da base da corola) e outras de colar inteiramente amarelo. O que parece dar alguma razão à revisão taxonómica que a Flora Ibérica iniciou nesta espécie. Segundo os seus autores, a espécie N. pseudonarcissus abrigaria quatro subspécies e, ignorando-se as variações de cor nas flores e outras diferenciações morfológicas menores, as plantas minhotas arrumar-se-iam todas numa designação única, N. pseudonarcissus subsp. portensis. Este é um endemismo do norte da Península Ibérica que em Portugal se concentra na Beira Alta, Trás-os-Montes e Minho — mas de que, por cá, se conhecem poucas populações.

Narcissus pseudonarcissus subsp. portensis (Pugsley) A. Fern.
Um relatório de 2010 sobre a biodiversidade em Vila Nova de Gaia inclui uma referência a este narciso, presume-se que baseada em observações antigas. Curiosamente, o epíteto portensis foi atribuído por H. W. Pugsley em 1933, referindo-se a exemplares colhidos perto do Porto. A Flora Ibérica (ainda em rascunho, a corrigir), que desconhece a presença do N. cyclamineus em Paredes de Coura, mantém que o N. pseudonarcissus subsp. portensis ainda ocorre no Douro Litoral.

Mais a sul, na Estremadura, Beira Baixa e Ribatejo, há registo de outra subespécie, N. pseudonarcissus subsp. pseudonarcissus, que não se restringe à Península Ibérica e que se suspeita ter sido introduzida em terras lusas. A diferença mais notória com a anterior está na relação de tamanhos das peças da flor e no habitat preferido: ambas gostam de prados, mas esta suporta melhor torrões mais pedregosos e até alguma secura.

7 comentários :

Carlos M. Silva disse...

Olá Maria e Paulo
Tendo-os fotografado em 2009,na Serra d'Arga e arredores(como vos disse)e a ambas as subsp.,sem que lhes soubesse dar o nome (correcto),posso inferir que num ano mais chuvoso como terá sido o de 2008-2009,a floração do N. nobilis (e o outro também)repetirá o espantoso porte e perfeição que aquele que vos enviei mostra.
O S.Pedro e a ministra da agricultura certamente ajudarão.
Obrigado pelo que esclarecem e mostram.
Carlos M. Silva

Luz disse...

Lindos! Adorei!!!

Rúben Vilas Boas disse...

Gostei! Só não percebo é porque tantas vezes se dá o nome pseudo às espécies. É só porque foram nomeadas posteriormente e relacionam-se com as "verdadeiras" não é? Bem, se é só por isso não acho que seja justo ou que faça algum sentido. Há alguma outra razão?

Obrigado!
Cumprimentos,
Rúben Vilas Boas

Anónimo disse...

Tenho vindo a descobrir no concelho de Ponte de Lima uma população de portensis que vive em carvalhais, prados e matos, sempre com níveis de humidade bastante menor que a da Serra de Arga, que também conheço. Mas também conheço populações do nobilis que não se encontram em lameiros nem em prados de água de lima, por exemplo em Montalegre e na Serra do Gerês. Seria interessante descobrir que fatores diferenciaram estas sub-espécies. É um desafio que deixo sobretudo para os profissionais.

João Lourenço

Estevão Portela-Pereira disse...

O ano passado fotografei Narcissus pseudonarcissus s.l. em terrenos de aluvião na margem direita do Rio Lima junto a um regato e à Ecovia para as Lagoas. Este ano ainda não passei por lá, mas esta população que parece crescer ao ritmo das sacholadas que vão dividindo os bolbos poderá ser fruto de introdução?!.. já que estas trombetas são visíveis em vários jardins da região. Por outro lado poderão estas ter origem nas populações silvestres. Mais a jusante no "Souto", que afinal é um carvalhal com eucaliptos, há uma população de N. triandus, que já existe há décadas segundo o relato pessoal da minha mãe que nasceu nestas terras.

A.Vaz disse...

Viva
Ao ler o vosso artigo, tal como a sua situação no trabalho para a Rede Natura 2000, verifiquei a falta de referência aos prados e até zonas ribeirinhas do domínio pública na serra da Peneda. É com prazer que vos envio prova disso.
http://olhares.sapo.pt/narcissus-pseudonarcissus-subsp-nobilis-ii-foto6809997.html
Cumprimentos
A. Vaz

Paulo Araújo disse...

Caro António Vaz:

Ficamos-lhe muito gratos pela notícia e por nos mostrar essas bonitas fotos do N. pseudonarcissus subsp. nobilis. De facto não sabíamos que ele existia na serra da Peneda. No PNPG, tínhamos apenas referência da sua existência no Gerês (perto de Tourém) e no cume da serra Amarela - lugares onde aliás nunca o vimos por não visitarmos essas serras na altura certa.

Saudações,
Paulo Araújo