Outros modos de ser gilbardeira
As directivas europeias, em boa hora aprovadas, sobre preservação de habitats naturais e respectivas fauna e flora silvestres, obrigam a União Europeia a um genuíno esforço de protecção, valendo-se de uma rede de sítios classificados e de um conjunto de leis de conservação abrangentes e com prazos curtos para implementação nos países membros. Contudo, o carácter global de tais medidas nem sempre está afinado com as ameaças e vulnerabilidades de cada território europeu em particular. Um exemplo deste desajuste é a ausência na lista de espécies ameaçadas, e nos vários anexos das Directivas Habitats, do Centaurium chloodes, de que, em anos recentes, só há registo em Portugal de uma população. Pelo contrário, incluem o Ruscus aculeatus (igualmente presente na lista vermelha da IUCN) que em Portugal tem uma distribuição ampla, ainda que sejam escassos os bosques de carvalhos, sobreiros ou azinheiras que se supõe serem (também) da sua predilecção.
Falemos, porém, de Ruscus, um género de origem mediterrânica que exibe uma notável adaptação a ambientes onde o risco de seca é elevado. Em vez de folhas, um luxo a que as plantas de regiões áridas não podem aspirar, a gilbardeira tem apenas uma boa ideia do que é uma folha. Baseada nesse conceito, modifica os talos, achatando-os, e obtém algo que realiza a fotossíntese como uma vulgar folha verde e se parece tanto com ela que um incauto nem desconfia do truque. Claro que uma tal mentirinha haveria de ser descoberta mais tarde ou mais cedo, e são as flores as delatoras. Apesar de serem inconspícuas, nascendo uma de cada vez e durando poucos dias, certo é que as flores brotam no meio da face inferior ou superior destas falsas folhas (ditas cladódios), revelando que se trata afinal de uma haste (ou pecíolo) a fingir de folha.
Das sete espécies do género, Ruscus aculeatus é a única nativa de Portugal continental. É um arbusto perene e, em geral, dióico, que exibe talos erectos, muito ramificados e lenhosos, e cladódios rijos, com um espinho no ápice. No Inverno, enfeita-se com chamativas bagas vermelhas como o azevinho. Tem virtudes medicinais (que, em algumas regiões europeias quase o deixaram à beira da extinção, o que explica a sua inclusão do Anexo V da Directiva Habitats) e talento ornamental que baste (que lhe tem valido lugar em muitos jardins).
Em alguns matos com sombra e solo calcário de Espanha ocorre outra espécie de Ruscus também de distribuição mediterrânica, R. hypophyllum, que, apesar do epíteto específico, nem sempre tem as inflorescências na face inferior do cladódio. Não é tão ramificado como a gilbardeira, os cladódios são maiores e mais flácidos, sem o bico aguçado na ponta, as inflorescências mais floridas e as flores com um pedicelo muito mais longo que faz com que as bagas pareçam cerejas. O seu carácter monóico está ainda em discussão entre os especialistas.
Na ilha da Madeira há registo de outra espécie, talvez com um progenitor comum aos Ruscus europeus, o R. streptophyllus. É um endemismo raro que vive em locais rochosos, sombrios e húmidos da laurissilva. Tal como no R. hypophyllum, os cladódios são grandes com pedúnculos longos e arqueados, e dispõem-se quase horizontalmente nos caules pendentes. Não é um arbusto ramificado, as flores nascem sempre na face inferior dos cladódios, e é fielmente monóica. É a única espécie do género Ruscus que tem verdadeiras folhas, embora apenas nas plantas recém-nascidas.
Na vizinhança deste Ruscus madeirense, e tão rara como ele, pode encontrar-se uma trepadeira (da Madeira e Canárias) que pode atingir os sete metros e cujas falsas folhas lembram as dos Ruscus. A Semele androgyna, que Lineu designou Ruscus androgyna, distingue-se deles porque as suas flores nascem nas margens dos cladódios.
1 comentário :
Olhando, diria que eram folhas. É a ignorância a falar. Espero não me enganar de novo.
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