03/04/2020

De Adeje a Chamorga, ou Tenerife de lés a lés

Sideritis infernalis Bolle
Totalizam 24 as espécies endémicas de Sideritis nas ilhas Canárias. A maioria delas está restrita a uma ilha só, e nessa ilha ocupa amiúde uma área limitada. Há espécies de montanha, outras de falésias costeiras, umas que se expõem à inclemência do sol, outras que preferem lugares resguardados, umas que vivem na laurissilva, outras em pinhais, outras ainda misturando-se com a vegetação xerófila de tabaibas e cardónes. Só em Tenerife, a ilha onde o género é mais diverso, são 13 as espécies de Sideritis assinaladas. Esta prodigalidade da natureza ensina-nos que há ilhas dentro da ilha. As distâncias em Tenerife são consideráveis, medindo a ilha 85 km de uma ponta à outra, mas o relevo, além de criar distintos nichos ecológicos, potenciou os efeitos da distância, acentuando o isolamento que permitiu a evolução de muitas linhagens distintas a partir, possivelmente, de um mesmo antepassado ancestral.

Essa profusão de espécies traduz-se, por vezes, numa clara diferenciação morfológica, como podemos ajuizar pelas duas endémicas tenerifenhas que aqui trazemos. Mostra-nos o mapa que elas não podiam estar mais afastadas uma da outra: a Sideritis infernalis, acima ilustrada, vive no sudoeste da ilha, no árido barranco sobranceiro à vila de Adeje a que chamam do Inferno; a Sideritis macrostachys, em baixo, refugia-se na laurissilva de Anaga, e é possível encontrá-la ainda para lá de Chamorga, que é a povoação mais nordestina de Tenerife. A separação geográfica e a diferenciação ecológica foram usadas com bom proveito: as duas plantas têm um aspecto de tal modo contrastante que não há confusão possível entre elas.

A Sideritis infernalis, planta que não costuma ultrapassar os 70 cm de altura, tem as flores dispostas em verticilos amplamente espaçados ao longo da haste. Cada verticilo é composto por meia dúzia de flores que se sobrepõem a duas brácteas lanceoladas, opostas uma à outra. A corola, branca e com bordo castanho, apresenta lábios pouco desenvolvidos. Pela arquitectura geral, a planta faz lembrar as suas congéneres em Portugal continental — as quais, contudo, dão flores bastante diferentes.

A Sideritis macrostachys, embora de dimensões semelhantes, tem um aspecto muito mais lanudo e fofo. A inflorescência é agora densa e compacta, a ponto de, quando as corolas caem, a geometria do conjunto fazer lembrar um favo de mel. Um favo da cor errada, é certo, branco e verde em vez de amarelo, enfeitado por estranhas línguas verdes que na verdade são brácteas. As flores, ainda que um pouco menores do que as da S. infernalis, têm os lábios mais salientes e mais bem formados, pintados do mesmo tom de castanho.

Com vantagem óbvia para a Sideritis macrostachys, ambas as espécies têm indiscutível valor ornamental. Quem sabe se pela dificuldade em se adaptarem a outros climas, não parece, contudo, que sejam muito usadas em jardinagem. Agora que as fronteiras se vão de novo fechando, e palavras como longínquo e inacessível ganham outra ressonância, talvez os jardins recuperem a vocação de nos dar a ver o mundo inteiro através das plantas.


Sideritis macrostachys Poir.

1 comentário :

bettips disse...

O que sinto aqui é muito maior do que o que leio...
Por esta janela espreito o mundo e sossego com os habituais presentes. Digo "ah, estão aqui!"
Olhando a terra em pequenos cantos apercebemo-nos da vastidão dela. E de como nos faz falta.
Abçs e cuidem-se (muito)