29/09/2011

A associação do agrião

Cardamine caldeirarum Guthnick ex Seub.
Ao fim de alguns anos a observar plantas silvestres, é inevitável que elas se repitam. Os lugares assiduamente revisitados já não revelam novidades, e quase nos limitamos a saudar distraidamente algumas velhas conhecidas. A mesma sensação de déjà vu que assalta o amador também aflige, e com maior intensidade, o profissional. Portugal é um país pequeno, com uma flora indígena ou naturalizada que não ultrapassará as 4000 espécies. A solução para quem procura coisas novas será demandar áfricas ou orientes inexplorados; ou então (como os fitossociólogos se lembraram de fazer) estudar as associações vegetais. Expliquemo-nos: certas espécies, por terem preferências ecológicas semelhantes, costumam aparecer juntas; o conjunto das espécies que caracteriza um determinado habitat diz-se uma associação vegetal. As associações vegetais recebem nomes alatinados que resultam, em geral, da combinação dos nomes das principais plantas que as compõem; um exemplo é Geranio purpurei-Cardaminetalia hirsutae. A ideia, além de ter permitido uma leitura mais profunda dos espaços naturais, expandiu prodigiosamente o âmbito da erudição botânica. A aritmética é simples: em vez de considerarmos as 4000 espécies separadamente, combinamo-las em grupos de duas, três ou mais. Tomando só conjuntos de duas espécies, obtemos 7998000 possíveis associações vegetais; se preferirmos conjuntos de três, o número sobre para 10658668000 (mais de 10 mil milhões).

Antes que a caixa de comentários se encha de protestos indignados, ressalvamos que nem todas as combinações de duas ou três espécies da flora portugesa configuram associações vegetais plausíveis. Um planta dunar do litoral e outra que viva em lagoas de montanha dificilmente coexistem na natureza. Tirando isso, e tendo em conta os exageros de que alguns fitossociológos são culpados, o exercício não é descabido nem irrealista.

À janela do escritório tenho uma floreira onde três azáleas de folhagem perene sobrevivem há mais de uma década, nunca se esquecendo de florir profusamente em cada Primavera. Costumava arrancar as ervitas espontâneas, mas deixei de fazê-lo com assiduidade e as azáleas não parecem ressentir-se do desleixo. Entre as plantas que colonizaram esse ecossistema semi-natural, o agrião-de-canário (Cardamine hirsuta) destaca-se pela persistência e abundância. O matrimónio entre a herbácea vadia e o arbusto ornamental leva já uns anos, e é justo que se lhe reconheça cidadania socio-taxonómica. Nasce assim a associação Rhododendronion azaleae-Cardaminetalia hirsutae as. nova inéd., até hoje conhecida de uma única floreira num prédio urbano de habitação, mas com potencial para surgir em muitos mais lugares.

A Cardamine hirsuta, que tem algumas semelhanças com o verdadeiro agrião, é uma planta anual oportunista, capaz de ocupar os recantos mais inesperados. Essas plantas omnipresentes podem despertar a nossa admiração pela sua capacidade de sobrevivência, mas dificilmente nos entusiasmam quando deparamos com elas. Foi por isso que pouca atenção prestei quando, na ilha das Flores, me pareceu vê-la em grandes quantidades junto a regatos e escorrências de água. Olhando melhor, vi que a planta açoriana era mais robusta e ramificada, com flores maiores. Tratava-se, de facto, da Cardamine caldeirarum, que é endémica dos Açores - e que, ocorrendo em quase todas as ilhas do arquipélago (a excepção é a Graciosa), chega em algumas delas, mas não nas Flores, a merecer o estatuto de raridade.

Como nos jardins açorianos também se cultivam azáleas, não é impossível nas Flores que algum agrião-de-canário-açoriano lhes vá fazer companhia. À cautela, fica desde já registada a associação Rhododendronion azaleae-Cardaminetalia caldeirarae as. nova inéd. Averiguarei da sua existência in situ numa próxima visita à ilha.

2 comentários :

trepadeira disse...

Dado o microclima existente aqui no Vale do Mondego,junto a Guarda,onde claramente se entrecruzam as três influências principais,atlântica,continental e mediterrânica,vou tentar registar algumas associações,sempre mais voltado para as borboletas mas,pode ser que surja algo interessante.
Cordial abraço,
mário

Janna disse...

Moradora dos trópicos mais precisamente Brasil,estou maravilhada com tal beleza e qualidade das fotos.
Amante da natureza em todos seus aspectos me deliciei.
Agradecida por tamanho presente.