Erva-loira na estrada descendente
Senecio pyrenaicus subsp. caespitosus (Brot.) Franco
Sem que nada façam para merecer tal tratamento, as plantas também podem cair em desgraça. Um endemismo de uma área restrita como a Serra da Estrela tem direito a ser citado em relatórios, a ser celebrado em resumos de maravilhas para turista ler, a ilustrar com a sua foto brochuras e folhetos de promoção. Mas depois os botânicos, sempre insatisfeitos com o status quo, mudam de opinião e decidem que tal endemismo afinal não o é, pois ocorre em vários outros lugares ou países. Atendendo a algumas subtis diferenças, quando muito tratar-se-á de uma subespécie endémica. Vendo melhor, as diferenças estão dentro do intervalo normal de variação da espécie, e por isso nem sequer configuram uma variedade, quanto mais uma subespécie. E assim, de degrau em degrau, vê-se o endemismo apeado do trono e condenado à inexistência. A planta em si continua a existir, não perdeu beleza nem utilidade; o nome é que é outro, e por isso já não a vemos com os mesmos olhos. Vá lá o ingénuo do Shakespeare (por interposta Julieta) alegar que «A rose by any other name would smell as sweet». Poderá o cheiro ser o mesmo, mas a verdade é que o nosso nariz mudou irremediavelmente.
Exemplo de despromoção foi a que sofreu a Silene elegans: há vinte ou trinta anos era uma das jóias botânicas da Serra da Estrela, um endemismo exclusivo ainda mais raro do que a Silene foetida subsp. foetida; agora que se passou a chamar Silene ciliata, e se sabe que ocorre igualmente em Espanha, já ninguém quer saber dela.
E é bem possível que a história se repita com a planta de hoje, uma erva-loira (nome que assenta bem a várias espécies de Senecio) que em Portugal só existe na Serra da Estrela. É uma moça modesta, sem nada desses ares de exclusividade que a sua condição de rara a poderiam levar a assumir. Gosta até de se postar à beira da estrada para ver o trânsito desfilar.
Foi no primeiro volume da Flora Lusitanica, em 1804, que Félix de Avelar Brotero fez o primeiro registo oficial desta planta; chamou-lhe então Senecio caespitosus. Passou-se mais de um século e meio, a serra foi rasgada por estradas, vieram hordas de turistas atraídos pelo engodo da neve, mas nada perturbava o sentimento de pertença da planta: ela era da serra e só da serra; não queria saber de outros países ou cordilheiras. O primeiro golpe foi desferido por João do Amaral Franco no 2.º vol. (de 1984) da Nova Flora de Portugal: o S. caespitosus ficava a ser apenas uma subespécie do S. pyrenaicus, espécie que ocorre também em Espanha e na França. Ainda assim, tratava-se, de acordo com o mesmo autor, de uma subespécie exclusiva da Serra da Estrela. Talvez essa réstia de glória se perca quando a Flora Ibérica fizer sair o volume das asteráceas: de facto, as particularidades morfológicas assinaladas por Franco (recorte da folhagem, diâmetro dos capítulos florais) não parecem ser suficientemente diferenciadoras; e à vista desarmada esta hipotética subespécie não se distingue das outras.
Por certo o leitor ficou, como nós, ansioso por conhecer o desfecho desta história. Uma Flora, coisa árida escrita na linguagem cifrada dos especialistas, pode ser uma leitura emocionante.
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