25/02/2013

Flora e fauna dos baldios urbanos


Hirschfeldia incana (L.) Lagr.-Foss.


Quem visita andares-modelo em novas urbanizações começa por dirigir-se a uma barraca onde, além do vendedor sentado à secretária, encontra uma maquete do projecto sobre uma mesa forrada a verde. No lugar do estaleiro esburacado e poeirento, semeado de entulhos, promete a maquete que há-de nascer um jardim; no qual, a julgar pelas figurinhas humanas que a povoam, hão-de passear famílias elegantes e louras. O possível comprador, que não é louro mas é casado com uma mulher que por vezes o é, que ainda não tem filhos mas prevê que, quando os tiver, eles não serão louros enquanto não frequentarem cabeleireiros, sabe que a realidade nunca estará à altura da maquete. E não hão-de ser apenas a cor do cabelo, o tom da pele ou a indumentária dos futuros moradores a desmentirem a profecia. O mais provável é que nunca venha a existir jardim, mas apenas um relvado que em pouco tempo cairá no desmazelo; ou nem isso, e os montes de entulho eternizar-se-ão na paisagem quotidiana. O promotor não terá desistido de fazer o jardim, mas a urbanização previa mais quatro ou cinco prédios além dos dois que já começam a ser habitados, e a crise obriga a adiar indefinidamente a sua construção. O jardim, toque final de requinte que daria coerência a todo o projecto, não pode ser executado aos pedacinhos.

Ainda assim, os ocupantes da urbanização não deixarão de ter flores à porta de casa. Elas serão até em maior quantidade e variedade do que seriam se, em vez do entulho, a janela da sala abrisse para um relvado minimalista. Há um sem-número de plantas, ditas ruderais, que se especializaram em habitats degradados e provisórios. Algumas, como a Hirschfeldia incana, são desgrenhadas e não têm pinta para concursos de beleza; outras, como os gerânios e as papoilas, só não se igualam às mais delicadas flores de jardim porque um preconceito de classe as impede de serem apreciadas como merecem. E, como aquilo não é natureza mas uma caricatura que o desleixo ajudou a criar, o efeito geral do entulho em flor não é de uma simetria colorida e repousante; é de uma luta sem quartel pela sobrevivência.

À semelhança dos gatos que fazem dos baldios urbanos a sua casa, as plantas sem eira nem beira que lá moram não têm nome. Na verdade, certos gatos menos esquivos acabam por ter muitos nomes, cada um deles atribuído por alguma pessoa das suas relações que ignora todos os demais. E a Hirschfeldia incana, além de ter um nome popular e verdadeiro, ineixa, tem também um inacreditável, hirsféldia-de-pêlo-branco. É improvável, porém, que quem veja esta planta nas traseiras do seu prédio conheça estes nomes ou se dê ao trabalho de inventar algum para seu uso.

Da família dos rabanetes e das couves, como aliás recorda o nome castelhano rabaniza amarilla, não consta que a hirsféldia-de-pêlo-branco [risos abafados] seja vulgarmente usada para alimentação humana, embora tenha folhas comestíveis. É uma planta bienal com floração primaveril ou estival, e com hastes que ultrapassam um metro de altura. Distingue-se, na fase da frutificação, pela ramificação profusa e desordenada e pelas numerosas vagens comprimidas sobre os eixos das inflorescências (foto 5). Ocorre por toda a Península Ibérica e região mediterrânica, em terrenos incultos ou como infestante de cultivos.

10 comentários :

lis disse...

Além da beleza da flores que brotam por aí em lugares ermos gostei mais ainda do texto que a identifica,
Ótima leitura ,Parabéns

bea disse...

Parabéns pelo texto. A hirschfeldia merece. Só por ter a coragem de florir em meio tão agreste, já vale. Mas também por ser desgrenhada e, ainda assim, amarela. Por se parecer imenso com as flores das couves de quem é parente, mas não se importar (as couves não são parentela de orgulho para ninguém, mesmo as flores ficam um bocadinho coíbidas). Agradam-me os relutantes deste mundo. Ou de outro. Se haja.

Boa semana

José M. M. Santos disse...

Tal como o construtor de maquetas que nos prometem vidas de Barbie e Ken, é preciso ter visão para saber apreciar uma planta que cresce no entulho.
Sonhar com uma vida de maqueta é fácil. Encontrar beleza num baldio... É só para alguns.

Lucy disse...

adorei

Carlos Aguiar disse...

As crucíferas ruderais começaram a florir. Chegou a saison :)

Carlos M. Silva disse...

Olá Paulo (e Maria)

Sendo de bermas e lugares desprezados, o facto é que só o ano transacto a fotografei cá por casa, numa parte de uma das bouças; e não sabendo, na altura, o que fotografara pois já não tinha flores, acho que a terei identificado ou no ND ou no Flora On pelo imenso emaranhado de caules numa confusão desafiante para o fotógrafo, numa cabeleira desgrenhada; caules esses que parecem vários, entrançados; foi isso que me chamou a atenção.

Quanto ao texto introdutório ..apenas sublime, como vós sabeis!

Abraço
Carlos M. Silva

Paulo Araújo disse...

Obrigado a todos pelos simpáticos comentários.

Carlos Aguiar:
Chegou foi uma saison muito friorenta, pelo menos para o que é hábito aqui no litoral. Talvez algumas plantas que já preparavam a floração se tenham retraído.

Carlos Silva:
És muito generoso, obrigado. Realmente a planta é um desafio para o fotógrafo, o que serve de boa desculpa para a inépcia das fotografias.
Abraço,
Paulo

bettips disse...

Como diz José Santos: não transformarão a Natureza nem a gente por computador (embora este sirva para coisas boas...). As plantas são revolucionárias (um pequeno texto também!).
Abçs

Unknown disse...

Muito bom...seria bom ter mais textos sobre a flora e fauna que habita estes lugares esuqecidos.

Unknown disse...

que espectáculo de texto... e que pena ter conhecido este blogue há tão pouco tempo (corada)...é agora uma referência!

Obrigada,
Paula Maia