O veneno de Sócrates
Conium maculatum L.
Em breve todas as escolas do país terão que pedir ao ministro das finanças autorização para comprar giz, papel, artigos de higiene e víveres para as cantinas; e o ministro, se os pedidos lhe chegarem com todas as vénias e protestos de humilde consideração, talvez vá libertando às pinguinhas, como quem sofre de retenção urinária, as míseras verbas necessárias. Quem sabe se o giz não é a gota de água que faria transbordar de vez o equilíbrio orçamental? Atrevemo-nos, porém, a sugerir outros cortes, não em alternativa, mas como complemento. Cortes esses que poderiam assumir carácter permanente, sem com isso querermos insinuar (longe de nós tal ideia) que o corte no giz deva ser temporário.
Há muito que em Portugal, pelo menos nas maiores cidades, deixou de haver jardinagem em espaços públicos. Os recintos universitários não são alheios a esse mal: os (impropriamente denominados) jardins que rodeiam os edifícios são na verdade extensos relvados, com meia dúzia de árvores proibidas de crescer plantadas aqui e ali com manifesta relutância. Em vez de jardineiros, há empresas de manutenção de espaços verdes que vêm aparar a relva duas vezes por mês e, uma vez por ano, podar as árvores para as fazer regressar às dimensões que tinham um ano atrás. É uma "jardinagem" toda subtractiva: poda, arranca, limpa, apara; nunca acrescenta uma flor, um arbusto, um canteiro. Para quê pagar um serviço tão triste, tão destrutivo e tão desqualificado? Se não há jardins nem gosto em mantê-los, então o orçamento em jardinagem deveria ser próximo de zero. Para evitar que o relvado se transformasse num mato eriçado, bastaria cortá-lo quatro ou cinco vezes por ano. Além da poupança orçamental, ganhar-se-ia um jardim com flores silvestres; e as árvores, livres do ritual da poda, poderiam finalmente fazer-se adultas.
Numa das entradas menos usadas da Faculdade de Letras do Porto, à rua da Pena, vicejavam há dias umas exuberantes umbelíferas com cerca de dois metros de altura. Distracção do "jardineiro", entretanto já corrigida, que se terá esquecido durante algumas semanas de submeter esse recanto do relvado à carecada regulamentar. Nem ele que removeu a anomalia, nem talvez os professores e alunos da instituição chegaram alguma vez a perceber que tinham ali uma lição viva, rica em interdisciplinaridade, que convocava em simultâneo a história, a literatura, a filosofia, a botânica e a medicina. Pois a planta não era outra senão a cicuta, de onde se extrai o famoso veneno com que, como relatou Platão, as autoridades de Atenas obrigaram Sócrates a matar-se. Ao contrário de outras umbelíferas peçonhentas, a cicuta não provoca uma morte convulsiva e dolorosa, mas sim uma paralisia gradual, sem perda de lucidez, que começa nas extremidades dos membros e termina fatalmente nos músculos respiratórios.
A cicuta (Conium maculatum) é adaptável e prolífera. Frequentadora de entulhos e baldios, de preferência sombrios e algo húmidos, tem a retaguarda protegida, e se desaparece de um local reaparece logo ao lado. Não vamos dizer onde para não suscitar mais perseguições, mas no mesmo perímetro universitário ainda sobram umas quantas cicutas altaneiras que acederam de bom grado, sob garantia de anonimato, a ser fotografadas. Planta anual ou bienal nativa da Europa, Ásia e norte de África, a cicuta floresce de Abril a Agosto. Se na cor branca das flores e na sua disposição ela se confunde com muitas outras umbelíferas, já o caule oco com manchas vermelhas (3.ª foto) é distintivo e permite uma identificação segura. Como sucede com certos cogumelos, as manchas funcionam como um sinal de alerta para a toxicidade da planta.
12 comentários :
No bairro dos Olivais Sul em Lisboa os prados verdes estão agora cheios de pequenas flores silvestres. Há uns anos dei os parabéns a uma engenheira silvicultora da CML por deixarem as florinhas aparecer e ela pensou que eu estava a ser irónico. Mas talvez continuem com falta de verbas e o aspecto dos canteiros é parecido ao que eu fotografei há dois anos:
http://imagenscomtexto.blogspot.pt/2011/05/um-canteiro-de-relva-nos-olivais-sul.html
Inteiramente de acordo com a sugestão de "poupança". A febre da roçadoira tomou conta do país. Já nem as ervas dos caminhos rurais escapam.
Cumprimentos.
Olá!
Excelente sugestão, sem dúvida!
E mais um post muito informativo!
Estamos sempre a aprender neste blog precioso!
Mais uma vez,
Parabéns e abraço,
ZG
Muito obrigada por esta informação. Não tinha o prazer de conhecer a cicuta. A que matou Sócrates. E que é afinal uma planta queridinha. Conhecia o entorpecimento que provoca e o não afectar da lucidez, Sócrates continuou discorrendo "na boa", depois de tomar o veneno, mas, como friccionasse os pés e parte inferior das pernas, supõe-se que o faria por entorpecimento.
quanto às poupanças...detesto galos autoritários e galinheiros. O reitor da faculdade de Lisboa parece que também.
Boa Semana
Olá Paulo
Por que será que a inteligência não medra (é o verbo e não me enganei) nos reinos dos decisores?
Acho que estamos todos embebidos em cicuta, pelo entorpecimento mental, também neste assunto.
Ainda à dias a uns metros de um cruzamento da N12 (Circunvalação) tinha o prazer de ver pujante um Gladiolus illyricus ou G. italicum(?); hoje ..tudo arrasado. Se limpassem junto ao cruzamento ..percebia-se ..mas tudo ..deve ser pago ao volume! Um incontável número de espécies com as suas pequenas flores e cores ..por que cinzento é preciso!
Obrigado Paulo ..por mais uma lição ..de como a partir de uma planta ..o que se poderia aprender ..sobre o Homem e as suas ciências, pelo menos para quem quer gastar tempo a aprender!
Abraço
Carlos M. Silva
Todos nao somos demais para nos insurgirmos contra esta mania das limpezas das nossas Camaras Municipais. Pelos vistos e uma fobia que se repete por todo o pais. Tambem aqui na Lourinha, quando chega a primavera aparecem as maquinas e limpam tudinho sem nenhuma outra preocupacao que nao seja vencer a guerra aberta contra tudo o que cresce de forma espontanea.
J.J. Amarante:
Obrigado por nos mostrar esse prado nos Olivais. Um curioso por botânica pode entreter-se a dar nome a todos essas plantinhas durante um bom tempo. É uma pena que tanta gente em Portugal ache que a vegetação espontânea é uma praga que tem de ser extirpada.
Francisco:
Tem toda a razão. No outro dia vimos uma cena na serra da Aboboreira (perto de Amarante) que nos deixou de boca aberta: estavam várias brigadas de roçadores a aplicar a máquina zero nas partes mais altas da serra, dizimando importantes zonas de vegetação natural como cervunais. E as mesmas câmaras que pagam este belo serviço (talvez para ocupar desempregados) são capazes de editar brochuras (como fez a Câmara de Amarante sobre a serra da Aboboreira) enaltecendo os valores naturais dos espaços que se empenham em destruir.
ZG:
Obrigado pela simpatia.
Bea:
Encontram-se na internet artigos fascinantes sobre os efeitos do envenenamento por cicuta. Houve médicos no século XIX que os experimentaram no seu próprio corpo para poderem descrevê-los com maior exactidão. Por pouco não morriam em prol da ciência. Ao que parece, se a dose for insuficiente para a paralisia subir até aos músculos respiratórias, o paciente não só não morre como recupera rapidamente da intoxicação.
Carlos:
Lá está, não há nada que esteja seguro. Os roçadores são pagos para roçar umas tantas centenas de metros por dia. Não é a beleza de uma flor (mesmo a de um gladíolo) que os vai deter.
Fiquei confuso. Também existe o género Cicuta nas Apiaceas. Mas será outra Cicuta.
Em Oliveira de Azeméis, no Parque La-Salete, eu chamo-os - aos pseudojardineiros - Moto-jardineiros.
Mesmo dentro dos 'canteiros' não utilizam ancinhos para juntar folhas... ainda ontem vi... andam com um 'moto-soprador' a soprá-las.
E, com a Moto-foice, cortam indiscriminadamente todo o tipo de árvores novas. Depois plantam outras, compradas em viveiros, muitas vezes das mesmas espécies, mas ordenadamente.
Não sei quem tem o cargo de mandar, mas o trabalho é acéfalo.
Dá ideia que Lineu é em parte responsável pela confusão entre as várias cicutas. Se seguisse o nome grego, o nome genérico para a planta a que chamou Conium deveria ser Cicuta, nome que ele reservou para outras umbelíferas. Não parecem restar dúvidas de que a cicuta que envenenou Sócrates foi o Conium maculatum. A Cicuta virosa, única espécie europeia do seu género, é rara na região mediterrânica (e nem sequer existe em Portugal), ao contrário do Conium maculatum. Além disso, os sintomas do envenenamento são muito diferentes.
Obrigado pelo pronto esclarecimento. Que resolveu na minha também outras dúvidas que tinha quanto à identificação de outras apiaceas... se não existem em portugal, não há como fazer confusão...
Abraço,
José Carlos Quental
Não temos jardins, mas temos belas rotundas por esse país fora...
Quanto ao giz deixou de fazer falta com o computador Magalhães...
Ao que isto chegou.
:-(
AM
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