29/07/2013

Endemismos: achados & perdidos

Santa Maria, Açores
É consensual que a flora vascular dos Açores contém escasso número de endemismos, entre 70 e 80. É esse o total de plantas que são espontâneas no arquipélago e em nenhum outro lugar do mundo. Talvez algum leitor estranhe que não se forneça o número exacto: são 72, 75, 79? Serão os botânicos tão pouco dotados para a aritmética que, mesmo com números tão pequenos, não conseguem acertar na contagem? O problema são as diferenças de opinião, ou o modo como certos autores valorizam ou não certas características diferenciadoras. Um caso paradigmático é o do Centaurium scilloides: até um leigo sem bagagem técnica ou teórica reconhece que as plantas açorianas, por terem flores invariavelmente brancas, são diferentes das continentais, com flores cor-de-rosa. Mesmo tendo em conta outras pequenas diferenças morfológicas, a tese que prevaleceu até há pouco, e que foi acolhida pelo recente volume da Flora Ibérica dedicado à família Gentianaceae, é que se tratava de uma só espécie, e que a variante insular não era merecedora de qualquer reconhecimento taxonómico. Eis senão quando entram em cena os estudos genéticos, por uma vez em defesa do senso comum, estabelecendo que aquilo que é diferente a olho nu também o é a um nível mais profundo. Em Dezembro de 2012, saiu na revista científica Plant Systematics and Evolution um artigo com o título A new endemism for the Azores: the case of Centaurium scilloides (L. f.) Samp., da autoria dos botânicos espanhóis José Antonio Fernández Prieto, Eduardo Cires, René Pérez e Álvaro Bueno. Nele se conclui que o C. scilloides é exclusivo dos Açores, e que as plantas continentais, pertencendo a uma espécie diferente, devem ser designadas por Centaurum portense (Brot.) Buchner. Como prenda de Natal de 2012, o arquipélago ganhou um novo endemismo, o que é adequada compensação pela queda em desgraça da suposta Marsilea azorica, ocorrida no ano anterior.

Há assim plantas desde sempre conhecidas no arquipélago que, de um momento para o outro, ganham o selo de tesouro natural de primeiro quilate. Devemos chamar-lhes endémicas arrivistas? Porque há as endémicas clássicas, cuja singularidade nunca esteve em dúvida, como a Azorina vidalii, a Euphorbia stygiana, a Scabiosa nitens, a Bellis azorica e o Vaccinium cyilindraceum. E, finalmente, há aquelas endémicas de estatuto incerto que alguém, com pouco fundamento, proclamou como tal vai para muitos anos, mas em que na verdade já pouca gente acredita. São as endémicas cadentes, à espera do golpe de misericórdia de um estudo moderno para serem apeadas da fama espúria. Talvez este fluxo permanente entre entradas e saídas não permita que o número de endemismos açorianos alguma vez ultrapasse os 80.

Asplenium azoricum (Milde) Lovis, Rasbach & Reichst.



O Asplenium azoricum é um endemismo açoriano de indiscutível mérito que só foi entronizado em 1977, em artigo de J. D. Lovis et al. no American Fern Journal. A sua longa permanência no anonimato deve-se em boa parte à semelhança com duas espécies também presentes no arquipélago: o avencão (Asplenium trichomanes subsp. quadrivalens) e o feto-de-escoumas (A. monanthes). Que se trata de três espécies distintas prova-o a contagem dos cromossomas, em perfeita progressão aritmética: o A. azoricum é diplóide (72 cromossomas), o A. monanthes triplóide (108 cromossomas), e o A. trichomanes subsp. quadrivalens tetraplóide (144 cromossomas). A condição de triploidia do A. monanthes indica que a espécie tem origem híbrida, mas que, ao contrário do habitual nestes casos, não se deu duplicação de cromossomas; o resultado é que o feto só se reproduz por apomixia (os gametófitos dispensam a fecundação para darem origem a nova planta).

Como ainda não se inventaram aparelhos para contar cromossomas in situ, é útil ao amador de botânica anotar os detalhes morfológicos que diferenciam o A. azoricum do A. trichomanes: assim, as frondes do primeiro têm pecíolo de um negro brilhante ou de um castanho muito escuro, e as pinas, que têm um formato quase triangular (as do A. trichomanes são mais curtas e rectangulares), apresentam um recorte bem mais pronunciado nas margens. Tais detalhes são porém mais evidentes nas plantas bem desenvolvidas que se encontram em sítios húmidos e abrigados, e haverá casos de determinação incerta. Finalmente, é uma grande ajuda saber que nas Flores e em Santa Maria o A. trichomanes quase não existe, e que na segunda dessas ilhas o A. azoricum é muito comum, tanto em muros e taludes como em bosques de faia e incenso.

2 comentários :

bea disse...

Bosques de faia e incenso...tão bonito. Era capaz de inventar uma história para um bosque tão de encantar.
Entre 70 e 80 endemismos estará bem. Há quem não persiga o número e a exatidão.
Obrigada.

Anónimo disse...

Olá Paulo e Maria!
É urgente um Flora-On Açores! Com os vossos registos e fotografias não há desculpa nenhuma para não ir para frente muito brevemente. Vou tentar convencer o Miguel a não adiar mais.
Obrigado!
Ana Júlia