Folhado nas nuvens
Viburnum treleasei Gand.
Se a névoa se tivesse arredado por uns momentos, exibir-se-ia na primeira foto, tirada no interior da ilha Terceira, uma montra perfeita da floresta endémica dos Açores. Mas chamam-lhe floresta das nuvens; e, se tudo o mais pode faltar ou ser adulterado, já as nuvens não abdicam do seu direito de comparecer, fazendo as fotos perder em nitidez o que ganham em realismo. Com maior ou menor dificuldade, nessa foto distinguem-se (clique para aumentar) o cedro-do-mato (Juniperus brevifolia), a urze (Erica azorica), o loureiro (Laurus azorica) e o folhado (Viburnum treleasei). Apesar de os nomes comuns poderem amalgamar espécies diferentes e por vezes sem qualquer parentesco, nas ilhas açorianas estas quatro designações são inequívocas e têm a vantagem de, ao contrário dos nomes científicos, não estarem sujeitas a mudanças abruptas ou a variações de gosto. O folhado, que nos Açores é um pequeno arbusto de não mais que 4 metros de altura, dá-nos um exemplo dessa instabilidade: há quem o subordine como subespécie ao folhado europeu, chamando-lhe Viburnum tinus subsp. subcordatum, ou quem prefira autonomizá-lo como espécie, e o trate por Viburnum treleasei.
Que o folhado açoriano tem, tanto no porte geral como no aspecto das inflorescências, uma grande afinidade com o V. tinus europeu é indubitável, e leva a suspeitar que os dois partilhem um antepassado próximo, ou que o primeiro seja descendente do segundo. As diferenças entre eles não são porém menos evidentes: as folhas do V. treleasei são arredondadas, brilhantes, com as margens ligeiramente reviradas para baixo; as do V. tinus são mais estreitas, de um verde mais baço, apresentando margens não recurvadas e um ápice bem definido. Quer seja considerado espécie ou subespécie, o V. treleasei tem bem seguro o seu estatuto como endemismo açoriano.
Enquanto não descemos do patamar das nuvens, algures entre os 400 e os 800 m de altitude, aproveitamos para reflectir sobre a ditadura que o latim exerceu durante séculos sobre a taxonomia botânica, e que só em 1 de Janeiro de 2012, por decisão do XVIII Congresso Internacional de Botânica, foi oficialmente abolida. Não se trata, como alguns jornalistas então disparatadamente escreveram, de fazer com que os nomes em latim (ou em algum arremedo dessa língua) deixem de ser obrigatórios, mas sim de permitir que a descrição acompanhando uma espécie acabada de baptizar (e sem a qual o nome proposto não é aceite pela comunidade científica) venha noutra língua que não o latim. Essa outra língua por enquanto é o inglês, mas talvez em menos de um século ela seja substituída pelo espanhol ou pelo chinês.
O padre e botânico francês Michel Gandoger (1850-1926) foi o primeiro a publicar o latinório de lei sobre o folhado açoriano, no artigo Plantes nouvelles pour les îles Açores (Bull. Soc. Bot. France, vol. 46, 1899). Eis uma amostra do que ele escreveu: «(...) foliis obtuse ovato-suborbiculatis, cordatis, margine revolutis, crassi, minoribus, prominule et ad angulos lanatos nervosis (...)». Não é fornecida qualquer tradução em vernáculo, por ela ser desnecessária aos leitores habituais da revista. Mas a dificuldade, para um leitor actual, leigo no assunto, que tenha o português ou qualquer outra língua românica como idioma materno, e que nunca tenha estudado latim, não é tanto o de decifrar o texto (a tradução fonética funciona sem grande dificuldade) mas o de saber o que significam os termos técnicos. A dificuldade pode não desaparecer, ou talvez até se agrave, quando o latim é vertido para inglês. Acabar com o latim é vantajoso sobretudo para os taxonomistas actuais, sem formação em línguas clássicas. Quantas vezes alguém que só deu uma ajuda no latim não terá, por essa via, conseguido fazer-se co-autor de uma nova espécie botânica?
Já em 1897 William Trelease (1857-1945) dera à estampa, no seu Botanical Observations on the Azores, uma descrição daquilo a que chamou Viburnum tinus var. subcordatum: «Characterized by its round-ovate obtuse subcordate leaves, often densely hairy in the axils beneath.» Pôr a coisa em vernáculo foi-lhe fatal: Gandoger, que escreveu a mesma coisa, mas em latim, dois anos mais tarde, ganhou-lhe prioridade — embora tenha tido a cortesia de dar à planta o nome do seu colega americano. Pois era essa a força de uma língua morta.
3 comentários :
Nao sei muito de nomenclatura botânica, mas suponho que o abade Gandoger teria sempre prioridade na categoria específica...
Mais um excelente post açórico, no melhor dos blogs!!
ZG
Obrigado, ZG. Confesso que nunca estudei as regras da nomenclatura botânica. Julgava que a primeira descrição válida publicada de uma planta, fosse qual fosse a categoria (espécie, subespécie ou variedade), teria prioridade sobre todas as outras. Nesta interpretação, o nome correcto do folhado açoriano, se se admitir que se trata de uma espécie autónoma, deveria ser Viburnum subcordatum - isto se a tal primeira descrição fosse válida, mas admiti que não por ela não estar em latim. Mas é provável que o ZG tenha razão e que o uso ou não do latim seja irrelevante neste caso.
Pois, caro Paulo, é um assunto um pouco complexo, sobretudo para mim, que não sou jurista... e ainda criaram os "nomina specifica conservanda" ou "rejicienda", conforme os casos, para complicar tudo um pouco mais...
Mas, seja como for, penso que o Latim e o Inglês se manterão válidos durante mais alguns séculos, provavelmente enquanto existir nomenclatura botânica...
ZG
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