23/09/2014

Ao sol no basalto


Cheilanthes guanchica Bolle


Os anglo-saxónicos chamam lip fern aos fetos do género Cheilanthes, o que etimologicamente se justifica notando que esta palavra de origem grega é composta por cheilos (= lábio) e anthos (= flor). Até os mais distraídos sabem que os fetos não dão flor, mas neste contexto o termo faz referência aos esporos, que são o modo que estas plantas ditas primitivas têm de se reproduzir. Os esporos aparecem resguardados por uma dobra na margem das pínulas que, podemos concedê-lo, são algo semelhantes a lábios humanos. E tal como há lábios grossos ou finos, uns mais rectilíneos e outros mais arredondados, também nos Cheilanthes essa parte da anatomia (ou, mais propriamente, da morfologia) varia consideravelmente, permitindo distinguir espécies que de outro modo se confundiriam. Verdade seja dita que, no trato entre humanos, o expediente de reconhecer as pessoas apenas pelos lábios causaria estranheza. Na verdade, o que as pessoas têm de mais individual (o código genético, a impressão digital) não é usado no quotidiano para nos reconhecermos uns aos outros. As caras são facilmente falsificáveis pela habilidade de um cirurgião plástico ou, muito mais prosaicamente, pelo talento de um actor. Se alguma espécie mais avançada fizesse da nossa objecto de estudo, certamente não se deixaria guiar pelas caras ao catalogar os espécimes estudados.

É então pelos lábios, neste caso algo ressequidos pela estiagem que acontece em Agosto mesmo nas ilhas (as fotos são do Pico), que podemos identificar com segurança este feto como Cheilanthes guanchica, diferente dos seus congéneres que costumamos encontrar em habitats rochosos de diversa natureza (granítica, xistosa, calcária) no continente português. Tal diferença entende-se melhor comparando a terceira foto de hoje com as da última coluna desta página. Os lábios têm uma membrana branca e transparente que os prolonga: chama-se pseudo-indúsio. No C. guanchica o pseudo-indúsio é alongado e praticamente contínuo; no C. maderensis ele é fragmentado em pequenos segmentos; no C. acrosticha é fimbriado; e no C. tinaei ele quase não existe. Só com vista muito apurada, ou com o auxílio de lupa ou de macro-fotografia, é que este receituário se pode usar na prática. E só na presença de frondes férteis, frescas e bem desenvolvidas ele se revela inequívoco. Por isso a melhor altura para destrinçar estes fetos, e para os observar em boas condições, é entre o final do Inverno e o início da Primavera. Ainda que tenham a fama de gostar de sol e de procurar os lugares mais secos e expostos, o certo é que as frondes estiolam e desaparecem durante os meses secos e quentes — podendo no entanto algumas delas reverdecer com o regresso das chuvas.

O Cheilanthes guanchica, que terá origem no cruzamento de dois dos seus congéneres (C. maderensis e C. pulchella, este último endémico das Canárias), é um feto com frondes de 8 a 15 cm de comprimento, dispostas em tufos, que nos Açores surge, e muito raramente, no Pico e em São Jorge, preferindo altitudes baixas e fendas de muros ou rochas basálticas com boa exposição solar. Parece ser a única espécie de Cheilanthes que ocorre no arquipélago, pois as referências à presença do C. maderensis (que já se chamou C. pterioides) dever-se-ão a erros de identificação. Foi originalmente descrito, em 1859, a partir de exemplares colhidos em Tenerife, pelo botânico alemão Carl August Bolle (1821-1909), aludindo o epíteto guanchica aos Guanches, povo que ocupava as Canárias antes da conquista do arquipélago pelos castelhanos. Também há notícia do C. guanchica na Madeira, no norte de África (Marrocos, Argélia e Tunísia), na Grécia, em algumas ilhas do Mediterrâneo (Córsega, Sicília), no sul de Espanha e, em Portugal continental, nas serras de Monchique e de Sintra. Seria um feito assinalável, a merecer recompensa, que o leitor encontrasse o feto nalgum desses lugares e nos enviasse um comprovativo da descoberta.

1 comentário :

bea disse...

É um feto especial, mas não especialmente bonito.