Migrações & metamorfoses
Pellaea viridis (Forssk.) Prantl
Antes de os humanos baralharem tudo, primeiro com as viagens de barco e mais tarde com as de avião, as ilhas eram universos fechados onde as leis da evolução se cumpriam sem interferências externas. Os organismos vivos que o acaso forçara a uma existência tão confinada tinham de se adaptar para sobreviver, e como resultado desse processo surgiam organismos diferentes de quaisquer outros que existissem no resto do planeta. A evolução, como é evidente, também ensaiou as suas habilidades nas grandes massas continentais, mas aí não houve obstáculos geográficos de monta à disseminação das espécies. Existem endemismos continentais de distribuição restrita (temos alguns em Portugal), mas são poucos e, por regra, são parentes próximos de espécies com distribuição mais ampla. Nas ilhas o número de espécies endémicas é percentualmente muito maior, e é mais marcada a diferença em relação às espécies de outras paragens. A Azorina vidalii, que deveria ser símbolo dos Açores em vez da malfadada hortênsia, não se parece com mais nada neste mundo.
Considera-se que uma espécie pertence à flora nativa de uma região se ela (ou alguma sua antepassada) chegou lá por meios naturais: as sementes ou esporos responsáveis pela colonização original foram trazidos pelo vento ou pelas marés, ou foram transportados pelos pássaros. Quando a introdução é feita, mesmo que involutariamente, pelo homem, já a espécie é classificada como exótica. Dito de outro modo, o homem não se considera parte da natureza. De facto, a civilização humana tem sido construída, e de um modo acelerado nos últimos dois séculos, à custa da destruição ou adulteração do mundo natural. Os Açores de modo nenhum escaparam a essa sina, apesar de serem habitados há menos de seiscentos anos. Sabemos, pelas amostras que nos ficaram de herança, como era a floresta nativa das ilhas, composta por juníperos, azevinhos, loureiros, sanguinhos, paus-brancos e faias-da-terra. Sabemos que as criptomérias, as hortênsias, as conteiras e os incensos foram importados do oriente. Mas nem sempre a destrinça entre o exótico e o nativo se faz de modo tão seguro. Compreensivelmente, as preocupações imediatas dos primeiros habitantes não incluíam a elaboração de uma lista exaustiva do revestimento vegetal das ilhas — se bem que o cronista Gaspar Frutuoso tenha feito, século e meio mais tarde, nos volumes das suas Saudades da Terra (1586-1590), um esforço notável mas não sistemático nesse sentido. Quando, no século XIX, os primeiros botânicos visitaram as ilhas já as transformações tinham sido grandes, e em vários casos já seria difícil decidir se uma dada espécie era nativa ou introduzida. Hoje em dia há técnicas para dar respostas mais seguras a essa pergunta: se uma planta deixou vestígios fósseis, por exemplo, não restam dúvidas sobre a sua presença ancestral nas ilhas. Na ausência de tais provas taxativas, a dúvida permanece. Se o habitat da planta parece relativamente intocado, se a planta nunca foi comercializada por não ter interesse ornamental ou económico, se não está associada a práticas agrícolas (como acontece com certas infestantes de campos cultivados), então é razoável supor que não é exótica. No caso açoriano, um atestado adicional de não-exotismo, ainda que algo incerto, é a planta ter sido referida pelos botânicos oitocentistas ou, melhor ainda, por Gaspar Frutuoso.
Devemos admitir que, aplicando tais critérios à Pellaea viridis, o tribunal botânico, reunido para lavrar sentença, está fortemente inclinado a considerar que nos Açores ela é culpada de exotismo. Só em 1937 ela foi pela primeira vez detectada numa das ilhas, mais exactamente no Faial, e desde então foi vista também em São Miguel, Terceira e Pico. Não sendo moradora das labirínticas florestas de nuvens, mas sim dos lugares desbravados e humanizados do litoral das ilhas, é pouco provável que, se já existisse no arquipélago, a sua presença escapasse aos Hochstetter, Watson, Drouet e Trelease, todos eles pioneiros do estudo da flora açoriana nos idos de oitocentos. E é sabido que ela é estimada por jardineiros e coleccionadores, e que já se naturalizou em lugares distantes como a Austrália e o Hawai. Nas alegações da defesa, algo débeis e pro forma, é lembrado que a área de distribuição natural deste feto abrange boa parte da África, incluindo Madagáscar e o arquipélago de Cabo Verde, além da Índia e de algumas ilhas do Pacífico. Não deverá admitir-se que quem já tanto viajou sem ajuda não teria dificuldades em dar o pequeno salto de 2200 Km entre Cabo Verde e os Açores? Acha bem, meritíssimo senhor juiz — e o advogado de defesa tenta, num último esforço, jogar a cartada emocional —, que se negue a cidadania açoriana a uma das mais elegantes e fotogénicas plantas das nossas ilhas sem haver provas irrefutáveis da prática de exotismo por parte da ré?
O juiz reconhece a fotogenia, mas não a considera como circunstância atenunante, e não muda o teor da sentença condenatória. Sente, porém, um discreto contentamento por ter tido oportunidade de fotografar a Pallaea viridis, ré neste processo, na berma da estrada que liga Cachorro a Lajido, na ilha do Pico. O dossier judicial, ilustrado com as fotos, ficou muito bonito. Agora é só esperar que a sentença transite em julgado.
litoral do Pico entre Cachorro e Lajido
5 comentários :
Excelente texto!
Move-me o gosto pela botânica. Retorno sempre aqui também pela qualidade dos textos. Tribunal botânico, gostei da comparação.
Que a inspiração continue.
Cumprimentos.
Obrigado pela amabilidade, Rafael.
Muito exótico o texto! Parabéns. As fotos, na verdade, compõem uma boa defesa
Mas, fora de qualquer despique, não considerando os danos a outras espéciies açoreanas, extrapolando os Açores, as hortensias são lindas.
Faço minhas as palavras do Rafael Carvalho. Excelente, sem a mínima dúvida. Abraço.
"culpada de exotismo."??
Mas o "exotismo" é algum crime?
Não constituem as plantas exóticas um enriquecimento para a nossa flora?
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