01/11/2014

Meia ponte para um narciso


Narcissus cavanillesii Barra & G. López


Este é um dos dois narcisos espontâneos em Portugal que floresce no Outono. A indicação das várias Floras é de que a floração decorre entre Outubro e Novembro. Por isso, no ano passado, fomos a Évora no início de Novembro para ver uma das duas únicas populações conhecidas no país. Não havia nem uma flor. Concluímos que era ainda cedo, e voltámos a fazer a longa viagem duas semanas depois. O desfecho foi idêntico. Terá desaparecido?, ouviu-se uma voz receosa. Prometemos iniciar este ano mais cedo a romaria, e descemos ao Alentejo nos primeiros dias de Outubro, logo que as chuvas intensas abrandaram. A ladeira que dá acesso ao rio Guadiana foi-nos enchendo de entusiasmo com as centenas de exemplares do perfumado Narcissus serotinus em flor e sinais animadores de que o Ophioglossum lusitanicum tem resistido bem ao pisoteio e voracidade do gado que por ali vai abocanhando a verdura. Ascendemos à ponte da Ajuda (quer dizer, à meia ponte) com a alegria inusitada de quem finalmente acertou, e tem o correspondente tesouro à espera. Pois sim. No topo da ponte havia de facto muitos pés de Narcissus cavanillesii, mas quase todos já em fruto ou com o repouso de Inverno iniciado, o que quer dizer que estavam invisíveis, reduzidos ao bolbo subterrâneo. Com boa vontade, lá se descobriram umas florinhas, e não nos restou mais do que imaginar o cenário colorido de amarelo-torrado das flores que teriam estado abertas duas semanas antes.

Cada plantinha tem cerca de 10 cm de altura (até já se chamou N. humilis), com uma flor no topo (às vezes mais) de tépalas grandes mas quase sem corola, aquela trombeta característica da maioria dos narcisos. Mas, apesar de residual, está lá como podem confirmar na última foto acima. Os estames nascem em duas camadas, curiosamente a alturas diferentes, parcialmente soldados ao cálice. As folhas, que parecem agulhas e que se notam na quarta foto, nascem em geral depois da frutificação. O fruto é a "azeitona" verde escura que domina nas fotos e as sementes são, como é usual neste género, pretas e brilhantes. O N. cavanillesii hibrida com o N. serotinus dando origem ao chamado Narcissus x alentejanus, que tem tépalas mais lânguidas e de tom amarelo menos intenso. O espíteto específico homenageia o famoso taxonomista espanhol Antonio José Cavanilles (1745-1804).

A Península Ibérica tem fama de ser o centro de diversidade dos narcisos, com cerca de 35 das 50 espécies silvestres conhecidas no mundo, 16 das quais endémicas (uma delas exclusivamente lusitana). O N. cavanillesii é nativo do sudoeste da Península Ibérica, Marrocos e Argélia. Aprecia solos secos, até áridos, mas parece depender da chuva para completar o seu ciclo de vida. No sul de Espanha surge em clareiras de bosques, prados e bordos de caminhos. Está incluído nos Anexos II e IV das Directivas Europeias sobre Habitats (92/43/EEC), e no Anexo 2 da lei espanhola que protege o património natural e a biodiversidade. Por cá está em risco de desaparecer.

Conta-se que um dos dois governos, português ou espanhol, quis certa vez reconstruir a ponte da Ajuda, e só não o fez porque deu ouvidos aos apelos dos botânicos para que se poupassem os narcisos. Se a história não foi bem assim, aqui fica o recado para o caso de alguma vez essa ameaça surgir.


Elvas: ponte da Ajuda sobre o rio Guadiana

3 comentários :

ZG disse...

Uma beleza rara, sem dúvida!!

Rafael Carvalho disse...

Sou um leitor assíduo deste blogue.
Entusiasma-me a sensibilidade com que os textos são escritos, o que demonstra a paixão dos autores pela flora do nosso país, património invisível aos olhos da maioria.
Regressarei novamente.
Cumprimentos.

bea disse...

Quanta viagem atrás de florinhas silvestres, plantas várias, pequenos caules, seres quase sempre miúdos. E a forma como são ditos é assim quase como se de filhos pequenos se tratasse; que se fotografam e mostram com amor e orgulho. Por serem de si mesmos bonitos