14/07/2015

Línguas viperinas nos Açores

Ophioglossum azoricum C. Presl

Pela sua raridade e dificuldade de detecção, as línguas-de-cobra — ou, se quisermos, os fetos do género Ophioglossum — são dos melhores pretextos botânicos para brincar à caça ao tesouro. Talvez os cépticos considerem exagerado chamar tesouro a uma planta tão discreta e de tão escasso efeito ornamental, mas a beleza não é uma condição objectiva: é a soma do que vemos com o que sabemos, e depende do valor de mercado atribuído pela comunidade de apreciadores. Mesmo que uma busca bem sucedida não se traduza na posse efectiva da raridade (colher uma planta como esta seria um acto gratuito de destruição), mas apenas em meia dúzia de imagens comprovativas do achado, devemos admitir que não somos imunes à cobiça do coleccionador nem ao espírito de competição.

Depois de termos mostrado as línguas-de-cobra maior e menor, faltava-nos a lingua-de-cobra intermédia. Terceira espécie de Ophioglossum presente em território português, o Ophioglossum azoricum configura, pelas suas dimensões, uma média aritmética quase perfeita dos seus congéneres. Ou talvez seja mais apropriado falar de média geométrica: a sua folha (ou fronde estéril, se quisermos ser pedantes), que terá uns 4 cm de comprimento (às vezes bastante menos, outras vezes mais), é pelo menos duas vezes maior do que a do O. lusitanicum, mas tem por seu turno cerca de metade do tamanho da do O. vulgatum. E, nesta sequência crescente de línguas-de-cobra, as folhas não vão apenas ficando mais compridas mas também proporcionalmente mais largas. Igualmente se registam diferenças na temporada em que cada uma delas escolhe ficar visível. O O. lusitanicum prefere o Inverno, surgindo com as primeiras chuvas de Outono; raramente se deixa ver depois de Fevereiro ou Março. Já o O. azoricum e o O. vulgatum optam por esperar pela Primavera, podendo persistir até Junho ou Julho. Quanto à ecologia, os três Ophioglossum preferem sítios mais ou menos húmidos, mas o tamanho impõe as suas exigências: o O. vulgatum dá-se bem em prados altos ou até lameiros, no meio de outras plantas amigas da frescura; para o O. lusitanicum, mais versátil, basta-lhe uma rala cobertura de musgo sobre uma rocha para se sentir em casa.

Dizem os entendidos que O. azoricum é uma espécie poliplóide gerada pelo cruzamento do O. vulgatum com o O. lusitanicum, e na verdade todos os indícios visíveis são a favor de uma origem híbrida. Herdou portanto de cada um dos seus progenitores um completo conjunto de cromossomas. O género Ophioglossum detém o recorde conhecido do ser vivo à face da Terra com maior número cromossómico, cabendo o título ao tropical O. reticulatum, com 1260 cromossomas. As fontes consultadas não são unânimes, mas o O. azoricum ostenta um honroso número de cromossomas, algures entre os 480 e os 720. Por comparação, a espécie humana tem apenas 46.

O número cromossómico não é uma medida fiável da complexidade de um organismo nem do seu grau de inteligência, caso contrário os Ophioglossum estariam a caminho de dominar o mundo. Muito pelo contrário, em Portugal parecem em vias de desaparecer. A excepção é o O. lusitanicum: pelo seu porte diminuto deveria ser o mais difícil de encontrar, mas vai aparecendo aqui e ali de norte a sul do país e também nas ilhas. Por contraste, as observações dos outros dois registadas no portal Flora On contam-se pelos dedos de uma só mão. Já que, apesar das ajudas, não conseguimos observar o O. azoricum em Portugal continental, pareceu-nos adequado procurá-lo nos Açores. O epíteto não significa que ele só se encontre nessas ilhas ou nelas seja especialmente abundante, e de facto nem uma coisa nem outra são verdadeiras: está distribuído por grande parte do centro e oeste da Europa, e nos Açores só existe, que se saiba, em cinco ilhas (Santa Maria, Terceira, Faial, Flores e Corvo). Acontece apenas que os exemplares que serviram de base à descrição original da espécie (pelo botânico checo Carl B. Presl, na sua obra Supplementum Tentaminis Pteridographiae, datada de Dezembro de 1844) foram colhidos nos Açores, e mais exactamente na Terceira, pelo nosso bem conhecido Karl Hochstetter.

Foi nas Flores que concentrámos as nossas buscas, e foi sobre uma falésia debruçada sobre a costa ocidental da ilha mais ocidental da Europa que finalmente vimos o O. azoricum, já com as hastes dos esporângios (as tais línguas viperinas) amadurecidas e tingidas de amarelo. Morava num rego entre duas pastagens, porventura a salvo da voracidade das muitas vacas, ovelhas e cabras que são as verdadeiras donas da ilha. O leitor com visão mais apurada pode tentar descobri-lo na foto em baixo.

2 comentários :

bea disse...

São as mais inócuas línguas de cobra que existem:). Por mim, estão preferidas.

ZG disse...

Belas e inócuas, sem dúvida!!