20/02/2016

Vassoura 1.0


Erica scoparia L.


Hoje a tecnologia renova-se todos os dias, e quem não se esforça por acompanhar as novidades transforma-se rapidamente num exilado de outras eras. Porém, nem sempre foi assim. É causa do maior espanto como puderam os nossos antepassados usar durante tantos séculos (ou milénios) o mesmo modelo básico de vassoura: um punhado de galhos secos mas flexíveis atados na ponta de um pau. Custa a crer, mas é verdade: não havia substituições periódicas de vassouras perfeitamente funcionais por modelos recém-lançados que faziam exactamente o mesmo; as vassouras só iam servir de lenha quando ficavam carecas, e as suas substitutas eram cópia exacta do que elas tinham sido quando novas.

Travão a fundo na dissertação, pois alguém nos avisa que as vassouras não evoluíram assim tanto: tirando o ter-se substituído a madeira pelo plástico (e ainda as há com cabo de madeira), a arquitectura geral da vassoura mantém-se inalterável desde sempre e assim há-de ser até à consumação dos séculos. A criatividade humana, seduzida pelo aspirador, deixou de se preocupar com a vassoura. E mesmo o aspirador, ao que nos dizem, dá sinais de estagnação no que toca ao design e ao princípio geral de funcionamento. Tanto assim é que há quem tenha desistido de trocar de aspirador todos os anos.

Desde a vassoura primordial até à vassoura contemporânea passámos da versão 1.0 para a versão 1.1, coisa que, no actual frenesim de inovação tecnológica, não deveria levar mais que uma semana. Mas essa falta de evolução permite-nos alegar que o fabrico artesanal de vassouras, usando justamente a urze-das-vassouras como matéria-prima, é assunto que não perdeu actualidade.

Deixando as instruções de montagem da vassoura para gente mais versada nessa arte, focamo-nos na questão de reconhecer a Erica scoparia. O epíteto scoparia é derivado de scopae, designação latina para vassoura, e outras plantas que partilham o mesmo epíteto (como o Cytisus scoparius) têm igual vocação para varrer. Quanto à urze-das-vassouras, o seu porte avantajado (excede frequentemente os 2 m de altura e pode chegar aos 4 m) e as suas folhas lineares, dispostas em verticilos de 3 ou 4, não permitem distingui-la de imediato de outras urzes de grande tamanho como a Erica arborea (urze-branca) e a E. lusitanica. Pelas flores, que são muito pequenas (até 2,5 mm de diâmetro) e esverdeadas, a distinção é óbvia, mas infelizmente o período de floração é curto, umas poucas semanas entre Abril e Maio. Com as flores já secas ou transformadas em frutos, é útil saber que elas se dispõem de forma muito densa e compacta (ver foto), o que não sucede com outras urzes de porte comparável. E há outra diferença que exige um olhar mais minucioso: a E. scoparia tem hastes glabras ou com poucos pêlos, enquanto que tanto a E. arborea como a E. lusitanica as têm densamente tomentosas.

É consolador para gente como nós que um gigante como Lineu também tenha cometido deslizes. A descrição no Species Plantarum (1753) da Erica scoparia assenta que nem uma luva, não ao arbusto que hoje é conhecido por esse nome, mas à... Erica arborea, que Lineu descreve (separadamente) na mesma obra e até na mesma página. Terá havido algum extravio ou má etiquetagem do material que Lineu recebeu dos seus colectores. Lineu apercebeu-se do erro e acabou por guardar no seu herbário uma amostra de E. scoparia com a etiqueta correcta, mas a descrição equivocada nunca foi corrigida. Se as leis que regem a taxonomia botânica tivessem sido cumpridas à risca, E. scoparia seria sinónimo de E. arborea, e a urze-das-vassouras teria que adoptar outro nome científico — por exemplo (e estes nomes existem mesmo) Erica absinthioides e Erica fucata. Valeu a tradição, pois o nome Erica scoparia já era usado antes de Lineu.

A terminar, diga-se que duas urzes endémicas dos nossos arquipélagos atlânticos, a E. azorica nos Açores e a E. platycodon subsp. maderincola na Madeira, são parentes muito próximas da E. scoparia — da qual, na opinião de alguns, não passariam de subespécies. Têm no entanto flores avermelhadas, o que, por a floração durar pouco, nunca pudemos confirmar ao vivo.

1 comentário :

bea disse...

Um artigo sobre a planta que serviu de vassoura durante séculos. Que discorre sobre aspiradores e cabos de vassoura cujos, digo eu que também os tenho em madeira, são preferíveis em plástico, evita a a gente de andar volta e meia a retirar farpas da palma da mão. Que regressa a Lineu para lhe encontrar um errito no sector, uma distracção da sua humanidade, talvez.

A bem da economia doméstica, digo que as vassouras actuais - com qualquer cabo - varrem muito melhor. E que o objecto que não domino, abomino e as mulheres a dias gostam de avariar evita um aumento de poeira no ar.
BFS