Uma távoa para el-rei
Dois dos últimos teixos (Taxus baccata L.) dos Açores
Há por toda esta ilha em redondo muita e grossa madeira de cedro, sanguinho, ginja, pau branco, faias, louros e, sobre toda, a madeira de teixo, somente no Pico, dos teixos que estão sobre a freguesia da vila de São Roque, da banda do norte, légua e meia da dita vila para dentro da serra, onde se acham paus de teixo muito direitos, que parecem paus de pinho e quase servem para mastros de caravelas pequenas, e de grossura no pé até (...) palmo e meio, e daí, adelgaçando para cima, pera a ponta, a modo de paus de pinho, e na nascença deles, da semente que deles cai, como semente de tamujo, não parecem senão pinhos. Há troncos destes que acham ainda agora debaixo da terra, de oito e dez palmos de comprido e de três palmos de largo, os quais servem pera escritórios e mesas muito ricas e fasquiaria de escritórios, por ser madeira de muito preço, pela qual razão se não corta, senão com expressa provisão do provedor da Fazenda de Sua Majestade, e da que é avaliada na Alfândega paga o que a colhe a metade ou, de duas távoas, uma para el-rei, de seus direitos.
Gaspar Frutuoso (1590). Saudades da Terra (Livro VI, capítulo 41)
O teixo, talvez por prometer durar até ao dia do juízo final, era plantado tradicionalmente nos cemitérios. Apesar da sua longevidade, é de entre as nossas árvores nativas uma das mais raras e perseguidas. Em todo o território nacional, só na serra do Gerês existem populações viáveis, capazes de subsistir e de se reproduzir sem ajuda humana. Na serra da Estrela conhecem-se apenas indivíduos isolados, que têm sido duplicados por estaca para reintrodução na natureza. O gradual desaparecimento do teixo em espaços naturais não se deve apenas, como poderia julgar-se pela citação de Gaspar Frutuoso, ao seu uso em marcenaria de luxo. Houve uma perseguição activa por parte dos pastores, que, sabendo-o altamente venenoso, receavam as consequências mortais para o gado que dele fizesse refeição.O teixo também é nativo dos Açores e da Madeira, e também nesses arquipélagos, pelas mesmas razões que ditaram a sua sorte no continente, ele se fez de uma extrema raridade. A última contagem, reportada em artigo publicado já em 2017, indicava que na Madeira existiam 58 indivíduos adultos, acantonados em ravinas inacessíveis. O relevo menos acidentado das ilhas açorianas não proporcionou igual refúgio — e, de todas as ilhas onde se sabe ter existido (Corvo, Flores, Faial, Pico, São Jorge e São Miguel), só no Pico, onde ocorria em maior quantidade e a sua madeira foi explorada até meados do século XVIII, o teixo não está ainda extinto. Só quando o último teixo morrer, de pé ou tombado, de morte natural ou provocada, é que se pode declarar o óbito da espécie. São quatro ou cinco as árvores que resistem, meio decrépitas, afastadas umas das outras, incapazes de dar semente.
O Jardim Botânico do Faial, apostado em evitar o previsível desfecho funesto, lançou um 2013 um projecto de reprodução vegetativa desses últimos teixos açorianos. O objectivo final é recriar populações que possam perpetuar-se sozinhas. No início de 2017, trinta jovens teixos foram plantados no Pico, em terreno controlado pelos serviços regionais do Ambiente (ver notícia aqui e aqui). É um novo futuro para uma árvore que parecia condenada. Só falta, literalmente, que o projecto dê frutos — ou seja, que entre as árvores clonadas haja indivíduos dos dois sexos (coisa que ainda não se sabe) para ser possível a produção de sementes. Poderão um dia as futuras gerações de açorianos, contemplando rebentos de teixo, concordar com Gaspar Frutuoso em como eles se parecem com jovens pinheiros?
A quem se interrogue sobre a importância de salvar nas ilhas uma espécie que, com maior ou menor abundância, é espontânea em quase toda a Europa, duas respostas se podem dar. A primeira, generalista, é que qualquer extinção local de uma espécie representa um empobrecimento do mundo natural, com consequências que não sabemos avaliar. A segunda é que, tanto no caso do teixo como no de outras espécies que colonizaram as ilhas, a estirpe insular representa um património genético distinto do da continental, mesmo que isso não tenha reconhecimento taxonómico nem se traduza em diferenças morfológicas óbvias. E na verdade, segundo um artigo publicado em 2010 (Taxus baccata in the Azores: a relict form at risk of imminent extinction), o teixo açoriano, além da sua especificidade genética, distingue-se pelo menor tamanho das folhas. O autores do artigo concluem mesmo que ele representa uma linhagem mais antiga do que os actuais teixos do continente europeu e do norte de África.
Numa terça-feira de Agosto, faz hoje quatro semanas, Pedro Casimiro (director do Jardim Botânico do Faial) e Cátia Freitas (uma das responsáveis pelo Banco de Sementes do JBF) apresentaram-nos esses venerandos e ameaçados teixos. Nunca poderemos retribuir por igual tamanha amabilidade. A expedição, algures no Pico, a uns novecentos e tal metros de altitude, foi acompanhada por uma chuva mansa, que esmoreceu gradualmente, e por um nevoeiro algo mais persistente que nos impediu de tirar fotos decentes. Os três exemplares que planeávamos visitar, representando 3/4 dos teixos conhecidos na ilha, situam-se todos em manchas de arvoredo rodeadas por pastagens de bovinos. A postura agressiva de umas tantas vacas em defesa das crias ditou um desvio do percurso, ficando assim um dos teixos por visitar. O prémio foi terem o Pedro e a Cátia descoberto um teixo que nunca tinham visto, o que representa um reforço de 25% da população conhecida da espécie. Será esse o teixo-fêmea que faltava detectar? Prémio adicional foi termos encontrado, no vale encaixado de uma ribeira sem água, um solitário exemplar de Euphrasia grandiflora, espécie raríssima no Pico. E fartámo-nos de ver erva-do-capitão (Sanicula azorica), mas sem surpresa para ninguém.
Devíamos talvez ficar agradecidos às vacas por tão frutuosa alteração de planos. Sucede que foi a monocultura da vaca, intensificada a partir dos anos 80 do século passado com os subsídios comunitários, a ditar em pouco mais de 20 anos uma redução de 50% do que restava da vegetação natural dos Açores, desbastada a eito para a abertura de pastagens. O processo foi particularmente notório e intenso na ilha do Pico. De modo que estes fragmentos de bosques delimitando pastagens, ainda que belos, são parte de uma coisa muito maior que se perdeu para sempre, e que há trinta ou quarenta anos ainda existia. Tudo para fazer as vacas felizes.
3 comentários :
Já ouvi a alguém, perante entusiasmado apreço pela paisagem açoriana, comentar: - Ora, trata-se de vacarias a céu aberto!
Não se pode ter tudo.
No caso, nunca poderemos saber se o que se ganha pode comparar-se com o (muito) que (já) se perdeu.
Melhor teria sido explorar a pecuária, sim, mas respeitar e conservar tanto quanto possível a biodiversidade que existia...
Oxalá os exemplares clonados sejam de género diverso. Ou, pelo menos, que a descoberta de mais um teixo ajude à proliferação. Os Açores devem ser lindos como paisagem. E as vacas, como outros animais, comem a eito.
Não podia estar mais de acordo com a conclusão final.
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