22/05/2021

O dever de não ver

Ranunculus ollissiponensis Pers.
Como crianças na hora do recreio, temos finalmente autorização para passear ao ar livre e admirar as belezas naturais fora do nosso concelho de residência, sempre sob o olhar benévolo e vigilante dos nossos tutores. Acontece que as restrições à mobilidade e o dever geral de recolhimento domiciliário resultaram, no que às plantas de floração precoce diz respeito, em restrições à visibilidade e, mais concretamente, no dever geral de não as vermos. Ninguém nos vai indemnizar pelas flores de 2020 e 2021 que fomos proibidos de ver, e ninguém nos garante que em 2022 a proibição não seja renovada, pois há um consenso alargado de que só as férias de Verão na praia merecem ser salvas, tudo o resto podendo ser sacrificado a esse objectivo. É a mitologia cristã a funcionar: purgamo-nos de pecados mais ou menos imaginários com cilícios e abstinências, para depois, de alma purificada, podermos ascender ao paraíso — ou, neste caso, descer à praia.

O botão-de-ouro ilustrado nas fotos, de seu nome Ranunculus olissiponensis, floresce entre Março e Abril, e por isso nos dois últimos anos a contemplação das suas flores esteve interdita a todos os portugueses que morassem em concelhos urbanos. Nem os lisboetas o puderam ver, apesar de o epíteto olissiponensis sugerir que este ranúnculo se dá especialmente bem na capital portuguesa. Trata-se, de facto, de uma espécie frequente em afloramentos rochosos de xisto ou calcário no norte e centro do país, rareando contudo a sul do Tejo. Em anos desconfinados, os lisboetas podem facilmente encontrar o R. olissiponensis na serra de Montejunto, e pela mesma altura (segunda quinzena de Março) é ele que cobre de amarelo os taludes das estradas do vale do Douro.

Botões-de-ouro há muitos, e quem perdeu este ranúnculo poderá ainda ver outros em habitats bastante diversificados. Por exemplo, o Ranunculus repens e o R. bulbosus, que preferem lugares encharcados, têm floração mais tardia, que se prolonga até Junho. E, nos calcários do centro e sul do país, há um ranúnculo também amarelo que floresce no Outono, o R. bullatus.

Como distinguir o Ranunculus olissiponensis dos seus congéneres? É preciso atender ao formato e pilosidade das folhas, que têm uma textura quase sedosa, e notar que tanto as hastes da planta como as sépalas das flores (2.ª foto em cima) são cobertos por pêlos brancos compridos. Se a época for avançada, o formato alongado do fruto é um indício importante. E, finalmente, há que ver se a ecologia está certa, pois o R. olissiponensis vive sobretudo em locais pedregosos e, de preferência, soalheiros.

1 comentário :

bettips disse...

Uma bela introdução à interdição... com a suave ironia que vos habita. Como se o vírus entre gentes pudesse andar entre montes! Ainda não, felizmente. E perder a azáfama de Maio é quase "pecado" porque a terra e os bichos cantam e voam alegremente, como uma sinfonia da sua renovação natural.
Abçs