Trovisco das nuvens
No Verão do ano passado, os portugueses voltaram a poder sair de casa. Com um afinco invulgar, despacharam-se a planear férias e viagens, antes que regressasse a ordem de encolher a rotina. As ilhas açorianas pareceram então a muitos o lugar ideal para recordar a vida anterior à pandemia. É que a decisão de obrigar à apresentação de teste negativo à covid ou certificado de vacinação à entrada nas ilhas, além da testagem regular para os não vacinados durante a estadia, manteria baixa a incidência dos infectados com o vírus; além disso, esse esforço de contenção dos contágios não teria custos para os turistas, pois os muitos milhares de testes a realizar seriam pagos pelo governo açoriano. Descontando o uso das máscaras e do desinfectante, a vida nas ilhas prometia ser tão despreocupada como a de 2019.
A nossa visita em Agosto do ano passado à ilha do Pico, programada muitos meses antes, coincidiu por isso com um fluxo pouco usual de turistas, ávidos de actividades fora de portas e ansiosos por ignorar o boletim covid diário. Não foi, portanto, surpreendente a notícia que recebemos à chegada, a de que, nas primeiras 2 semanas de Agosto as licenças para subir ao topo da montanha estavam completamente esgotadas. Note-se o reforço do advérbio completamente, sem o qual a palavra esgotadas pareceria conter ainda a esperança de uma vaga. Nós, a quem interessavam as cotas a meio da montanha e a ampla costa, encolhemos os ombros. O assunto das subidas à montanha regressou, porém, com novo vigor ao pequeno-almoço do dia seguinte: além dos turistas, duas grossas nuvens tinham aportado à ilha e teimavam em estacionar na parte superior da montanha, mantendo-a com um nevoeiro cerrado e impedindo, nesse e nos dias seguintes, qualquer caminhada até aos 2351 metros do topo do Pico. Confiantes na natureza humana, os operadores turísticos sorriram, enquanto aconchegavam o melhor possível a resignação dos hóspedes: se não puderem ver este ano o nascer do sol no Piquinho, decerto voltarão no próximo ano — o que é bom para o negócio, bendito seja o anti-ciclone dos Açores.
Abaixo do anel de nuvens, o céu manteve-se cinzento, é certo, mas a ameaça de chuvisco só raramente se concretizou. Com os turistas amuados nos hotéis, pudemos passear como se a ilha fosse só nossa e das vacas (que, infelizmente, continuam a comer e pisotear em locais que deveriam ser de protecção integral). Num desses dias, descemos com vagar a estrada desde os 1250 metros de altitude, e foi nesse percurso que corrigimos uma impressão anterior, a de que a Daphne laureola é uma espécie rara na ilha do Pico.
Não só o trovisco-louro é fácil de avistar nos locais mais bem preservados da montanha acima dos mil metros, como parece apreciar a humidade que ali é excessiva, o clima frio e ventoso, o sol incerto e as crateras sombrias dos pequenos vulcões na encosta. Ao reparar com mais atenção nos arbustos arredondados de folhagem densa que esta espécie forma, apercebemo-nos de outro pormenor: esta Daphne laureola não tem exactamente a mesma morfologia da que ocorre em bosques de montanha na Europa (vimo-la na Cantábria, mas conhece-se um núcleo na serra de Sintra). Por exemplo, o hábito dos arbustos açorianos é mais baixo e ramificado (como o das plantas nos Pirenéus, identificadas em algumas Floras como Daphne laureola subsp. philippi); as folhas das plantas açorianas são mais coriáceas e pequenas, com ápice agudo, algumas curvadas como se enroladas num caracol (as da variante continental são também arrosetadas mas podem chegar aos 40 cm de comprimento e 12 cm de largura). As flores são esverdeadas (amareladas as europeias), agrupam-se em inflorescências lassas (com as flores muito juntas na versão do continente) e as pétalas também se distinguem na disposição e nervuras. Se estas diferenças são relevantes, resultado de um clima mais favorável ou têm base genética? Não se sabe. Supomos que o assunto aguarda pelo interesse de algum botânico que se disponha a um estudo mais apurado.
1 comentário :
Sei que é um "lugar comum" para pessoas com as vossas especificidades botânicas. Mas será que têm fotografias das vinhas do Pico, cercadas por muros de lava, resistentes e vivas? É uma paisagem única, do que me foi dado ver por outros. Gostava de ver "pelos vossos olhos". Abçs
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