23/05/2023

Hipericão amargoso



Há milénios que as ilhas do Mediterrâneo são habitadas, e estima-se que a colonização de Maiorca se tenha iniciado há uns 4500 anos. Haverá assim poucos espaços dessa ilha que não tenham sido alterados pela presença humana. As extensas florestas de azinheiras e pinheiros-do-Alepo que cobrem as íngremes vertentes da serra de Tramuntana, embora densas e verdejantes, não são exactamente território virgem. Além dos caminhos e estradões que as cruzam, e das muitas cercas que vedam a passagem a forasteiros, o coberto vegetal também sofreu alterações, mesmo que, em contraste com o que é regra em espaços naturais portugueses, as espécies exóticas invasoras sejam pouco ou nada visíveis. Isto se nos cingirmos às espécies vegetais, porque de facto o maior problema para a conservação da natureza em Maiorca é uma invasora de quatro patas: a cabra. As populações de cabras assilvestradas, descendentes das que foram introduzidas na ilha logo nos primeiros séculos do povoamento, têm vindo a pôr em risco plantas endémicas raras como o Senecio rodriguezii — e, em certos lugares da ilha, têm extirpado arbustos nativos outrora comuns (como a Euphorbia dendroides) ou travado a renovação natural do coberto arbóreo (leia-se esta notícia).

Hypericum balearicum L.


Contudo, e ao contrário do que sucede nos arquipélagos da Macaronésia, a vegetação endémica das Baleares dispõe de algumas defesas contra a depredação por herbívoros, já que coabitou durante a sua evolução com um herbívoro endémico da família dos caprinos. Esse animal terá sido rapidamente extinto (talvez em menos de cem anos) após o povoamento das ilhas e só foi (re)descoberto, sob a forma de ossadas, no início do séc. XX, sendo então nomeado Myotragus balearicus. É por certo graças a ele que existem plantas maiorquinas de hábito compacto dotadas de espinhos aguçados (como o Astragalus balearicus), que são obviamente desencorajadores do mais voraz dos apetites. Outro modo de uma planta evitar converter-se em refeição é ser peçonhenta ou de sabor desagradável. Tudo indica ser essa a estratégia usada pelo hipericão-das-Baleares (fotos em cima): não sendo nada espinhento, não há outro motivo plausível para as cabras recusarem alimentar-se da sua tenra folhagem. Ou talvez as folhas deste arbusto não sejam assim tão tenras: são pequenas, têm um aspecto rígido e crispado, e apresentam margens pontuadas por verrugas proeminentes — verrugas essas recheadas com uma resina que não é certamente um néctar dos deuses. Idênticas verrugas com idêntico recheio distribuem-se de alto a baixo nos ramos e raminhos da planta. O aviso é claro e todas as cabras o respeitam: nenhuma se dispõe a trincar o Hypericum balearicum, que vai fazendo a sua tranquila vida de sempre em Maiorca (onde é mais abundante, aparecendo desde a costa até aos cumes mais elevados) e nas demais ilhas baleares.

Nenhuma outra espécie do género Hypericum — que alberga espécies de porte muito variável, desde herbáceas a pequenas árvores — dispõe de igual mecanismo de dissuasão da herbivoria, e por isso é justo qualificar o Hypericum balearicum de inconfundível. Outro título de nobreza que ninguém lhe tira é ter sido descrito por Lineu em 1753 no seminal Species Plantarum. É de supor que já nessa época as ilhas mediterrânicas fossem assiduamente frequentadas por viajantes norte-europeus em busca de climas mais amenos.

15/05/2023

Trovisco peludo

O fascínio que quase todos sentimos pelos dinossauros deve-se, em parte, à diversidade notável de formas e hábitos nesta família de animais, mas é alimentado pelo terror que os fósseis denunciam e que os filmes sobre o tema muito bem exploram: de um tamanho medonho, com caudas, mandíbulas e dentes pavorosos, alguns dinossauros foram predadores tão poderosos que, se ainda existissem, muitos outros seres não teriam surgido na Terra. Curiosamente, a outra razão para o encanto dos dinossauros deve-se precisamente ao facto de, apesar de extintos, restarem da sua presença na Terra inúmeras provas. Ainda que tenham deixado de existir, a sua assinatura no passado pôde chegar até hoje e ser entendida pelos novos habitantes da Terra.

Vem este arrazoado a propósito da planta que hoje vos mostramos. Está extinta em Portugal: nunca terá sido abundante (havia apenas registo dela nas areias marítimas junto à foz do rio Guadiana, no Sotavento Algarvio), mas o certo é que, desde 1853, ninguém a avista nesse local, ou noutro qualquer do litoral português. Segundo os autores da Lista Vermelha da Flora Vascular de Portugal Continental, o seu desaparecimento em solo nacional talvez se deva «às obras de regularização da foz do rio Guadiana e à expansão urbana da cidade de Faro, que poderão ter causado a destruição de indivíduos e profundas alterações no habitat». Por idêntica degradação do habitat, desapareceu também dos prados húmidos costeiros, entre o Minho e a Beira Litoral, a orquídea Epipactis palustris. No sudeste de Espanha, e mais geralmente na bacia do Mediterrâneo, a Thymelaea hirsuta é bastante frequente, e floresce no Inverno. Fomos, por isso, à procura dela em Dezembro na ilha de Maiorca.

Thymelaea hirsuta (L.) Endl.


O género Thymelaea abriga espécies arbustivas e subarbustivas, perenes (caso da T. hirsuta) ou anuais (como a T. passerina). As folhas são inteiras, por vezes densamente tomentosas. Segundo os botânicos, e ao contrário do que juraríamos ser verdade, as flores não têm pétalas. São apenas cálices tubulares amarelos (raramente rosados) com 4 lóbulos, protegidos por brácteas que parecem folhas, e que em algumas espécies se agrupam em espigas, noutras em cachos.

A T. hirsuta é peculiar na preparação para a época de floração. Apesar de ser uma espécie monóica, com flores unisexuais ou hermafroditas num mesmo indivíduo, podem encontrar-se, numa mesma população, exemplares cujas flores são quase todas masculinas e outros em que são quase todas femininas — como se afinal se tratasse de uma espécie dióica. Mas este desempenho vai mais longe: de ano para ano, ou até numa mesma temporada de floração, um indivíduo de T. hirsuta pode mudar a sua tendência sexual maioritária se isso beneficiar a polinização e, portanto, a produção de sementes, ou outro factor ambiental o justificar. Como deduzimos do caso português, todo este prodigioso labor florístico pode ser insuficiente para impedir a sua extinção.

05/05/2023

Fentilho de Maiorca



O barranco de Biniaraix, em Maiorca, ascende desde o vale de Sóller e proporciona um íngreme acesso à serra de Tramuntana, a cordilheira que se estende por todo o limite norte da ilha e atinge os 1445 metros de altitude no seu ponto culminante. Nos primeiros 400 metros da subida, e com excepção de alguns pontos de passagem mais estreitos, as encostas que ladeiam o barranco estão talhadas em socalcos ainda mais vertiginosos que os do Douro. Só que, em vez de vinhas, os patamares estão ocupados por olivais; e, em vez do avermelhado do xisto, os muros exibem a brancura do calcário de que a ilha é feita. A olhos portugueses parece uma paisagem híbrida, um cenário duriense feito de materiais arrancados ao maciço calcário estremenho. É bem apropriado que alguma da vida vegetal refugiada nesses muros seja também ela de origem híbrida.

Asplenium majoricum Litard.


Inicialmente descrito em 1911 pelo francês René Verriet de Litardière (1888–1957) com base em exemplares colhidos nos muros da cidade de Sóller, o Asplenium majoricum foi tido, durante muito anos, como endémico da ilha de Maiorca — ou até endémico do município de Sóller. É que esse feto não frequenta altitudes elevadas e a sua área de distribuição na ilha é bastante restrita. Contudo, sabe-se hoje que o mesmo feto ocorre na Espanha continental, tanto em Valência como no sul da Catalunha, embora se suspeite, pelo estudo de marcadores genéticos, que as duas linhagens da espécie, a peninsular e a maiorquina, tenham surgido de forma independente. De facto, o Asplenium majoricum é um tetraplóide que resultou, por hibridação e duplicação do genoma, do cruzamento de dois fetos diplóides, ambos de apetências calcícolas, o Asplenium fontanum e uma forma ancestral do Asplenium petrarchae. Não é impossível que idêntico cruzamento de espécies, seguido de igual duplicação do genoma, se tenha dado em dois locais distintos: um caso desse tipo foi reportado na Escócia, há 11 anos, com a Erythranthe peregrina (= Mimulus peregrinus), produto da hibridação, ocorrida em pelo menos duas localidades bem afastadas uma da outra, de duas espécies exóticas naturalizadas, uma norte-americana e outra sul-americana.

Com folhas curtas, de 6 a 12 cm de comprimento, o Asplenium majoricum combina o porte miniatural do A. petrarchae com o carácter glabro e o desenho das frondes do A. fontanum. Ter optado pelo tamanho do mais humilde dos seus progenitores valeu-lhe a sobrevivência numa ilha em que as cabras assilvestradas vêm provocando grande destruição da flora espontânea. Encolhido nas fendas dos muros, sem deixar sobressair a ponta de uma folha, não há cabra que lhe ferre o dente. O A. fontanum, com frondes que ultrapassam os 20 cm, pagou cara a imprudência de se mostrar a descoberto: os últimos exemplares conhecidos na ilha foram, há poucos anos, protegidos com redes para não serem devorados por cabras (história completa aqui).