Hipericão amargoso
Há milénios que as ilhas do Mediterrâneo são habitadas, e estima-se que a colonização de Maiorca se tenha iniciado há uns 4500 anos. Haverá assim poucos espaços dessa ilha que não tenham sido alterados pela presença humana. As extensas florestas de azinheiras e pinheiros-do-Alepo que cobrem as íngremes vertentes da serra de Tramuntana, embora densas e verdejantes, não são exactamente território virgem. Além dos caminhos e estradões que as cruzam, e das muitas cercas que vedam a passagem a forasteiros, o coberto vegetal também sofreu alterações, mesmo que, em contraste com o que é regra em espaços naturais portugueses, as espécies exóticas invasoras sejam pouco ou nada visíveis. Isto se nos cingirmos às espécies vegetais, porque de facto o maior problema para a conservação da natureza em Maiorca é uma invasora de quatro patas: a cabra. As populações de cabras assilvestradas, descendentes das que foram introduzidas na ilha logo nos primeiros séculos do povoamento, têm vindo a pôr em risco plantas endémicas raras como o Senecio rodriguezii — e, em certos lugares da ilha, têm extirpado arbustos nativos outrora comuns (como a Euphorbia dendroides) ou travado a renovação natural do coberto arbóreo (leia-se esta notícia).
Contudo, e ao contrário do que sucede nos arquipélagos da Macaronésia, a vegetação endémica das Baleares dispõe de algumas defesas contra a depredação por herbívoros, já que coabitou durante a sua evolução com um herbívoro endémico da família dos caprinos. Esse animal terá sido rapidamente extinto (talvez em menos de cem anos) após o povoamento das ilhas e só foi (re)descoberto, sob a forma de ossadas, no início do séc. XX, sendo então nomeado Myotragus balearicus. É por certo graças a ele que existem plantas maiorquinas de hábito compacto dotadas de espinhos aguçados (como o Astragalus balearicus), que são obviamente desencorajadores do mais voraz dos apetites. Outro modo de uma planta evitar converter-se em refeição é ser peçonhenta ou de sabor desagradável. Tudo indica ser essa a estratégia usada pelo hipericão-das-Baleares (fotos em cima): não sendo nada espinhento, não há outro motivo plausível para as cabras recusarem alimentar-se da sua tenra folhagem. Ou talvez as folhas deste arbusto não sejam assim tão tenras: são pequenas, têm um aspecto rígido e crispado, e apresentam margens pontuadas por verrugas proeminentes — verrugas essas recheadas com uma resina que não é certamente um néctar dos deuses. Idênticas verrugas com idêntico recheio distribuem-se de alto a baixo nos ramos e raminhos da planta. O aviso é claro e todas as cabras o respeitam: nenhuma se dispõe a trincar o Hypericum balearicum, que vai fazendo a sua tranquila vida de sempre em Maiorca (onde é mais abundante, aparecendo desde a costa até aos cumes mais elevados) e nas demais ilhas baleares.
Nenhuma outra espécie do género Hypericum — que alberga espécies de porte muito variável, desde herbáceas a pequenas árvores — dispõe de igual mecanismo de dissuasão da herbivoria, e por isso é justo qualificar o Hypericum balearicum de inconfundível. Outro título de nobreza que ninguém lhe tira é ter sido descrito por Lineu em 1753 no seminal Species Plantarum. É de supor que já nessa época as ilhas mediterrânicas fossem assiduamente frequentadas por viajantes norte-europeus em busca de climas mais amenos.