16/05/2012

Petrarca e as pteridófitas

Asplenium petrarchae (Guérin) DC. in Lam.


O italiano Francesco Petrarca (1304-1374), inventor do soneto, foi talvez o mais influente poeta europeu dos últimos dez séculos. Será isso razão cabal para se dar o seu nome a um feto discreto que vive em fissuras de rochas calcárias? Há uma desproporção evidente entre a grandeza do homenageado e a pequenez da planta que lhe é dedicada. Faz até lembrar o hábito de Lineu de baptizar com o nome dos seus adversários as plantas mais inúteis ou desgraciosas. Não nos precipitemos, porém, que o caso é bem diferente. O Asplenium petrarchae pode ser pequeno, mas não é insignificante. As suas peculiares exigências de habitat — gosta de rochas ensolaradas, mas esconde-se nos interstícios para se proteger do sol — fazem dele um feto raro, e o recorte das suas frondes tem uma precisão de relojoaria. Petrarca, amante da natureza e talvez o primeiro alpinista da história, não desdenharia tal oferenda. Deve-se ela ao francês Joseph Bénézet Xavier Guérin (1775-1850), que em 1804 baptizou com o nome Polypodium petrarchae um feto colhido em Fontaine de Vaucluse, vila dos Alpes franceses onde Petrarca viveu entre 1337 e 1351, e que desde então soube tirar bom proveito turístico do seu mais famoso residente.

Avencão-peludo é o nome português proposto para o Asplenium petrarchae, e parece ele próprio resultar de um equívoco. Como pode ser "avencão" um feto com frondes de não mais que 10 cm, em geral bem menores? A explicação está na sua vaga semelhança com o Asplenium trichomanes, vulgarmente chamado "avencão". Além de ter folhas mais curtas e com menos pinas, o avencão-peludo distingue-se justamente pela pilosidade que o reveste. Outra sua particularidade, visível na segunda foto acima, é a ráquis ser castanha até 2/3 da extensão e verde na parte terminal.

Franco & Rocha Afonso, no livro Distribuição das Pteridófitas e Gimnospérmicas em Portugal, de 1982, consideram que o Asplenium petrarchae é um dos fetos mais raros do país, talvez em perigo de extinção. Dão conta da sua ocorrência apenas na serra de Arrábida e no Barrocal algarvio. Em anos recentes, além de se ter confirmado que ele continua a existir nesses locais, também foi descoberto a norte do Tejo, o que nos deixa mais tranquilos quanto ao seu futuro em território nacional (veja o mapa de distribuição no portal Flora-On). As plantas que ilustram o texto foram encontradas numa pedreira abandonada da serra de Aire, no concelho de Torres Novas — e, para já, representam a localização portuguesa mais a norte de uma planta com uma distribuição global quase exclusivamente mediterrânica (do sul da Península Ibérica até à Grécia, e ainda Marrocos, Argélia e Tunísia).

Há uma dúvida que gostaríamos de esclarecer. Do Asplenium petrarchae reconhecem-se as duas subespécies petrarchae e bivalens, que são geneticamente distintas (a primeira é tetraplóide, com 144 cromossomas, e a segunda é diplóide, com 77 cromossomas) embora de aspecto muito semelhante. A primeira é mais comum, e é a única de que até hoje há registo em Portugal, mas a segunda também ocorre em Espanha, a menos de 40 Km da fronteira entre os dois países. Atendendo às diferenças morfológicas que a Flora Ibérica aponta entre as duas subespécies, somos levados a desconfiar (pelo formato das frondes e pelo maior espaçamento das pinas) que a população da serra de Aire pertence à subespécie bivalens. Como as plantas não seguem as especificações do manual com a fidelidade de um produto de linha de montagem, não temos qualquer certeza. Nenhum botânico profissional quererá tirar isto a limpo? Com sorte, ficaria co-descobridor de uma planta nova para a flora portuguesa.

4 comentários :

Carlos M. Silva disse...

Olá Paulo
Tenho que confessar ..que estas plantas me escapam,ou melhor ..sou displicente com elas,assim sim! Por que confesso,como os insectos,sou atraído pela cor e pela flor!
Sei que só passou um dia mas ..não há por aí (país!) que saiba e queira contar os cromossomas?
Abraço
Carlos M. Silva

Paulo Araújo disse...

Olá Carlos

E nós de insectos não vemos nada, mesmo daquelas borboletas mais vistosas. A questão é ir fazendo recuar a fronteira da ignorância, sem perder a noção de que o que ignoramos é sempre incomparavelmente mais vasto do que o que conhecemos.

Se ninguém se propuser fazer a contagem dos cromossomas, contactamos algum especialista. Pena que não haja máquinas portáteis para esse efeito.

Abraço,
Paulo

@guia-real disse...

Olá Paulo e Maria,
Obrigado pela vossa disponibilidade e paciência!

Um Abraço Montanheiro,
Miguel

Paulo Araújo disse...

Olá, Miguel.

Nós é que agradecemos a oportunidade que nos deram de conhecer esses lugares mágicos. Sozinhos não íamos lá, e é bom andar na serra com quem a sabe viver.

Abraço,
Paulo